São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Um mundo à deriva

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DA ILUSTRADA

O lançamento do primeiro dos cinco volumes de "Mil Platôs", conjunto de 15 textos escritos pelos pensadores franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari em 1980, vem preencher uma lacuna. Causa surpresa o fato de esta segunda parte de "Capitalismo e Esquizofrenia", iniciada com "Anti-Édipo", em 1972, ter permanecido inédita no Brasil durante tanto tempo, já que seus trabalhos posteriores ganharam tradução quase instantânea.
Pois "Mil Platôs" não dá apenas continuidade, mas corrige desvios ocasionados pela gigantesca pretensão de "Anti-Édipo" —a saber, forjar um quadro conceitual vinculado ao ideário das revoltas de maio de 68—, como se apressam a reconhecer seus autores no "Prefácio para a Edição Italiana" que acompanha este volume.
Consumido pelo próprio sucesso, "Anti-Édipo" foi usado e abusado pela escola anti-psiquiátrica e hoje se transformou em curiosidade histórica. Já "Mil Platôs", ao contrário, brilha pelas ousadias ainda intactas, por oferecer a multiplicidade como modo de construção e de leitura que caracteriza os grandes livros de filosofia (como a "Ética" de Espinosa, com sua estratificação infinita —inspiração confessa de Deleuze e Guattari).
É este princípio da multiplicidade que funciona como núcleo das teses de Deleuze e Guattari. "As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito", afirmam os autores no prefácio.
Tal construção começou a ganhar corpo na obra ainda solitária de Deleuze quando, em 1953, lançou "Empirisme et Subjectivité", primeiro dos trabalhos de apropriação de clássicos da filosofia —Hume, aqui, e depois, Nietzsche, Kant, Bergson, Espinosa e Leibniz.
Em seu primeiro estudo, Deleuze avança sobre o território pouco explorado das relações na teoria do conhecimento de David Hume. Para o empirista inglês, graças ao hábito um sujeito adquiriria um fundamento estável para ajuizar um vínculo entre dois fatos como, por exemplo, associar reiteradamente um tal efeito a determinada causa —efetuar uma síntese, como esclarecerá, depois, Kant.
Para Deleuze, as leis da subjetividade, ou seja, a psicologia como fundamentação de regras que tornam estável as associações —ponto frágil da obra do empirista— interessa menos que a natureza própria das relações, que Hume traz à luz.
Se o sujeito é quem vincula, quem impõe determinações do tipo tal fato "é" causa de tal efeito, abstraído o sujeito as coisas permanecerão eternamente à deriva, entregues à sua própria singularidade, libertas do poder limitativo da subjetividade com suas regras. No lugar do "é" um promissor "e" passa a reinar e as coisas voltam a valer em si mesmas, restituídas à absoluta imanência.
"Mil Platôs" é um programa que visa restituir em sua plenitude esta imanência.
Se se trata de propor a liberação do mundo da coerção do sujeito, de um rei-filósofo, foco transcendente que impõe suas leis —decalque modernizado do céu das idéias platônicas e do Deus cristão com sua Razão infinita—, é preciso constituir um método.
É o que Deleuze e Guattari se esforçarão para esclarecer na "Introdução" de "Mil Platôs", intitulada "Rizoma".
O rizoma deve ser um sistema capaz de "fazer o múltiplo". Para tanto os autores listam seis princípios (conexão, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura a-significante, cartografia e decalcomania) que definem por aproximação a lógica capaz de restituir ao múltiplo sua autonomia.
Em todos eles vigora a necessidade de recuperar a mobilidade e a imanência. O princípio da multiplicidade, por exemplo, propõe "a inexistência de unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito", e define: "Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza".
Daí decorre um dos mais importantes conceitos que percorrem a obra deleuzo-guattariana, o de agenciamento: "Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões".
Por sua vez, os princípios de cartografia e de decalcomania propõem a distinção entre o método imanente —o mapa— e o transcendente —o decalque. Este "organiza, estabiliza, neutraliza as multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus (...), o decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa".
Esta é a ameaça da representação, instaurada com o advento do cogito cartesiano: o mundo como imagem e semelhança do sujeito que o pensa, que o submete a suas categorias para dele se apossar.
Ao contrário do decalque, o mapa não copia, ele compõe: "Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real. (...) O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente". Por isso "ele faz parte do rizoma", é condição de sua expressão.

Paradigma do caos
É, portanto, um método aberto, probabilístico, caótico, expressão filosófica de um paradigma da ciência contemporânea que se expõe na "Introdução" de "Mil Platôs" e que vai dominar cada uma das séries ou estratos que compõem o livro.
Pois, é o que se perguntam os autores, como ainda confiar à estabilidade subjetiva a tarefa de decifrar um mundo que a própria ciência já se adiantou na tentativa de compreender a incerteza e a indeterminação?
Como ainda pensar assim se até o cérebro já deixou de funcionar sob o regime da estabilidade? A conclusão, necessária, é que "muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito mais uma erva do que uma árvore".

Texto Anterior: ESTÉTICA; SEMINÁRIO
Próximo Texto: Hayden White tece poética da história
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.