São Paulo, quarta-feira, de dezembro de
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Hayden White tece poética da história

NELSON SCHAPOCHNIK

NELSON SCHAPOCHNIKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O que está em debate aqui não é a pergunta 'O que são os fatos?', mas, antes, 'Como os fatos devem ser descritos a fim de sancionarem um modo de explicá-los em vez de outro?"
Hayden White

O lançamento de "Trópicos do Discurso" tem o mérito de produzir um efeito desobstrutivo no horizonte da historiografia, proporcionando a desestabilização de uma determinada ordem do saber.
Ao se posicionar contra a tirania das convenções e fronteiras acadêmicas, Hayden White questiona os tabus da "imaginação histórica" e contribui para a revivificação de uma disciplina cujos pressupostos permaneciam ancorados numa epistemologia centrada nas condições de verdade, objetividade e cientificidade.
Sob a aparente dispersão temática (a questão da representação na escrita da história, o tema do "nobre selvagem" no pensamento ocidental, as relações entre a crítica historiográfica e o campo conceitual da crítica literária e de filosofia, estruturalismo e pós-estruturalismo) e o amplo espectro de escritores visitados (Montaigne, Vico, Croce, Foucault, Derrida), os 12 ensaios que compõem esta obra, originalmente publicada em 1978, permitem vislumbrar um eixo argumentativo lúcido e incisivo, que caracteriza o discurso histórico como interpretação e a interpretação como narrativização.
Hayden White reforça nesta seleção de ensaios algumas proposições aventadas na sua obra anterior, "Meta-história" (Edusp). Notadamente, ele refuta concepções miméticas do discurso da história como uma transcrição realista de eventos passados, exteriores e anteriores ao texto.
Este deslocamento proporciona uma nova visada sobre a operação historiográfica, concebendo-a como um construto, um ícone verbal forjado pelo historiador no próprio ato de identificação e descrição dos eventos que irão compor a trama do texto.
Portanto, as diferentes interpretações são nada mais que projeções de protocolos linguísticos que os historiadores usaram para prefigurar o conjunto de acontecimentos.
Considerados como as estruturas básicas da figuração, esses quatro tropos fornecem categorias para identificarmos os modos de representação que vinculam uma ordem de palavras a uma ordem de pensamentos.
Ao invés de reiterar o cânone das escolas historiográficas ou, ainda, se valer de uma tipologia cujos princípios organizativos repousam na referência aos seus supostos "conteúdos", a proposta de uma tropologia se traduz em um exercício bastante sofisticado que enfatiza as funções poéticas (auto-referentes), conativas (afetivas) e sobretudo metalinguísticas (codificadoras) presentes nas diferentes modalidades do discurso histórico.
Constituindo-se em um modelo valioso para a análise dos discursos e da consciência em geral, a teoria dos tropos é elevada ao nível de uma categoria ontogenética que repercute na estrutura da linguagem, estabelecendo uma homologia entre os modos de reflexão, representação e explicação do processo histórico, as idéias de Freud sobre o mecanismo dos sonhos ("condensação", "deslocamento", "representação" e "revisão secundária") e os padrões transformacionais do pensamento conceitual elaborado por Piaget ("sensório-motor", "representacional", "operacional" e "lógico").
Finalmente, seria importante ressaltar que os pressupostos desenvolvidos em "Trópicos do Discurso" não destroem a diferença entre fato e ficção, história e literatura, imaginação e pensamento, porém redefinem as relações entre estes pares no interior do discurso.
O que parece inusitado é que esta reorganização defendida por Hayden White tenha despertado reações corporativas de ambos os lados. Incômoda e suspeita, esta aproximação ultrajava a pretensão de "verdade" reivindicada pelos historiadores e ainda parecia avançar sobre aquele território da "criação imaginativa" que estava reservada aos escritores ficcionais.
Ora, nenhuma das asserções parecem atingir o alvo, pois a capacidade de criação e uso do imaginário não é prévio ao estabelecimento de fronteiras discursivas, nem tampouco o reconhecimento das "ficções da representação factual" significou um descrédito na atividade da pesquisa histórica e, no limite, no próprio status do conhecimento histórico.
Longe de se apresentar como um truísmo, o instrumento disponível ao historiador para configurar a teia dos fatos e dotar de sentido os eventos são as técnicas da linguagem figurativa que, por sua vez, é a mesma empregada pelos escritores ficcionais. Isso sugere que, se o discurso histórico deve ser compreendido como um produto de um tipo distinto de conhecimento, que articula um lugar, uma prática, e culmina em uma determinada forma de escritura, ele deve ser analisado como uma estrutura de linguagem.

NELSON SCHAPOCHNIK é professor de teoria da história na Universidade Estadual Paulista - Franca/SP

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