São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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O exílio desértico de Bowles

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

Se existe um imaginário popular para escritores, o lugar reservado para Paul Bowles está ligado, de forma irremediável, a um forte teor de exotismo. Quase que inteiramente por sua culpa, uma pequena cidade localizada no Marrocos, Tânger, se tornou um posto obrigatório para todo artista vitimado pelo seu próprio ideal romântico de arte.
E é exatamente para essas pessoas que "Tantos Caminhos", autobiografia de Bowles escrita em 1972, e lançada agora no Brasil pela editora Martins Fontes, certamente não é dirigida.
Nascido em 1910, filho de um abastado dentista de Long Island, no estado de Nova York, Bowles é o conhecido autor de "O Céu que nos Protege"(editado pela Rocco, assim como seu volume de contos "Chá nas Montanhas"), transformado em filme pelo diretor italiano Bernardo Bertolucci.
No filme ele aparece narrando a perturbadora história da tentativa de reconciliação de um casal, tendo como cenário as atrativas e quentes cidades árabes. Na verdade, o resgate do escritor para as massas serviu, antes, para ajudar a fixar a própria imagem de Bowles como a grande Greta Garbo da literatura americana.
Realizar um filme sobre uma obra de Bowles ("O Céu que Nos Protege" foi seu primeiro romance) e contar com sua presença física, atuando e, mais do que isso, se movimentando em cena, funcionava como um aguardado retorno; a satisfação de uma grande curiosidade. Enfim, o escritor exilado sendo visto por todos em seu habitat natural.
"Tantos Caminhos" funciona, então, como o extremo oposto desse grande e posterior acontecimento. O Bowles que fala de si —que na verdade escreveu sobre si mesmo há 23 anos— pretendia mais esconder do que revelar sua vida íntima, ou as razões de seu auto-exílio.
Todos os problemas de sua vida, aprendemos logo no início de suas 458 páginas, passam pelo difícil relacionamento com seu pai, um homem que, ao menos para o olhar de um Paul Bowles ainda infantil, se comportava como um dogmático mentalmente desequilibrado, que usava seu filho para testar sua autoridade perante toda a família.
O que torna compreensível, ainda que surpreendente, a quantidade imensa de vezes (em um número pequeno de páginas) que Bowles diz estar odiando seu pai ou sendo magoado por ele.
Sua vingança, o que poderia facilmente ser interpretado como sua primeira fuga, foi perceber desde muito cedo que seu comportamento e suas escolhas poderiam chocar, terrivelmente, aqueles ao redor que mais o incomodavam. Em resumo, sua família e outras autoridades. As únicas pessoas que faziam parte de seu cotidiano: "Até os cinco anos de idade eu nunca tinha falado ou visto uma outra criança, ou brincado com uma. Minha idéia de mundo era um lugar habitado exclusivamente por adultos", Bowles afirmou em entrevista ao escritor americano Jay McIrney, para um número da revista Vanity Fair, em setembro de 1985, quando suas memórias estavam sendo relançadas no mercado americano.
Assim, logo que descobriu o mundo, partiu frontalmente para o embate. Uma vez, por não gostar muito de uma professora, aos sete anos de idade, só fazia suas lições escrevendo de trás para frente. Redações e contas corretas, mas que só poderiam ser lidas através de um espelho.

Música e Arte
A primeira parte de sua autobiografia segue mostrando seu brilhantismo, sua capacidade de "espantar os burgueses" e, o mais importante: sua aproximação com a música em seus primeiros estudos, seguindo até a adolescência, quando enviava seus poemas para uma revista francesa comandada pelos surrealistas de primeira hora.
Aos 18 anos, Bowles segue os passos de Edgar Allan Poe e se matricula na Universidade de Virginia. Depois de um ano de desencontro e tédio absoluto, abandona tudo e parte para a Europa, se misturando à comunidade de escritores e artistas que viviam em Paris.
Através da amizade com Gertrude Stein é que descobre pela primeira vez Tânger —naquele tempo apenas um lugar curioso para se passar as férias— e prossegue em sua vida de viajante: continua suas andanças pela Europa e chega até a América do Sul.
Pouco tempo depois retorna para os EUA e consegue se firmar como compositor em Nova York, trabalhando em projetos com Orson Welles, Elia Kazan, Tennessee Willians e, em 1943, realiza um trabalho com o maestro Leonard Bernstein, dançado por Merce Cunninghan no Museum of Modern Art, o MoMa.
Esse foi o tempo em que, além de todos esses grandes nomes, conhece também Jane Auer, uma aspirante a escritora que, mais tarde, se tornaria a sra. Bowles e autora do livro "Duas Damas Bem Comportadas". Sua autobiografia termina no início dos anos 60, roubando-nos qualquer testemunho sobre a "grande década libertária" ou sua Tânger de hoje.
O afastamento da imagem romântica de Bowles se inicia exatamente quando, através de suas lembranças, evidencia que sua maior ambição na vida não era um lugar. Mas pessoas e seu tempo.
Suas lembranças são o retrato de um momento, de suas relações com aqueles que construíam ou se revoltavam contra manifestações artísticas. Não há em Paul Bowles o desejo de afetação, mas uma crítica a esse mesmo desejo. Partir, em sua obra e sua vida, é uma escolha pessoal e até mesmo um acaso em sua vida. E não exatamente uma escola para escritores.

Obra de iniciação
Mas há também parte de sua história que é deixada de fora de suas lembranças. Seu amor pelos meninos do Marrocos, a maneira que Jane enlouqueceu e seus casos extraconjugais com os amigos e amigas de Paul; e, ainda, como se sentia desconfortável com a quantidade de seguidores que arrebanhou, involuntariamente, pelo mundo.
"Tantos Caminhos" funciona como uma obra de iniciação, criando o divertimento de se conhecer um pouco melhor —e na verdade tão pouco— a vida de um homem e um escritor fascinante, que viveu em um tempo e entre pessoas igualmente fascinantes. Mas não há, enfim, qualquer tipo de revelação. Não se pretende saciar a curiosidade mórbida de seus leitores.
Sua autobiografia, apesar de esclarecer alguns enganos sobre sua vida, não é rigorosamente um ato de confissão. Como seu personagem de "O Céu que nos Protege", que morre quase esquecido em um país estranho, Paul Bowles também tem uma incrível dificuldade em olhar para o espelho.
Em "In Touch" volume de sua correspondência publicada no ano passado nos EUA, escreveu a um amigo: "Acho que tenho passado minha vida tentando esconder tudo de todo mundo. Terminei por não conseguir encontrar algumas coisas minhas". E "Tantos Caminhos", sua autobiografia, não é exatamente uma exceção.

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