São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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As brumas de Nova York

MARCELO REZENDE
DA REDAÇÃO

Em "A Mecânica das Águas", o mais novo romance do escritor norte-americano E.L. Doctorow, que acaba de ser lançado no Brasil, há uma perversão de seu mais querido tema: Nova York.
Para quem se acostumou com sua visão terna da cidade, cuidadosamente criada em seus outros livros, dessa vez Doctorow passa a trabalhar em um outro registro. Recua mais no tempo e conta uma história de terror e mistério em uma Manhattan que começava a se ajustar a um novo cotidiano, após a Guerra de Secessão.
Nesta entrevista por telefone à Folha, de sua casa no bairro do Brooklyn, Doctorow fala das influências de seu novo livro, da visão que tem do jornalismo e da escritora Edith Warthon, autora de "A Era da Inocência". E como, em uma noite de neblina, descobriu uma cidade do século 19 na Nova York do final do século 20 —"a mesma cidade por onde caminhavam Poe e Melville".

Folha - Por que, depois de uma obra memorialística, positiva, sobre Nova York, a necessidade de um romance gótico?
E.L. Doctorow - Essa é uma questão muito difícil de responder. Os romances não se organizam para mim como uma questão de escolha, no que se refere aos temas. O romance se inicia com uma imagem extremamente evocativa. Algo que vejo pelas ruas. Tento então entender por onde minha imaginação me conduz. O começar de um livro.
"A Mecânica das Águas" teve início com a imagem de dois garotos que afundam nas águas, em um reservatório público. Fato que aparece no romance, mas em sua parte final, como um sonho para o personagem McIlvaine.
Folha - Toda a imprensa americana julgou "A Mecânica das Águas" como uma espécie de resgate de um autor como Edgar Alan Poe, pela recriação da atmosfera de mistério, do espetacular, criados no romance. Mas parece existir também outras vozes da ficção americana do século passado, como Henry James e Herman Melville.
Doctorow - Durante a feitura do livro, notei que começava a participar de uma longa tradição da ficção norte-americana, que remontava ao século 19. A história envolvendo o detetive, o mistério, a ficção que mostra a ciência e suas experimentações. Algo que na verdade leva até Nathanael Hawthorne, que se ocupava com a idéia de uma ciência médica, aquilo que as pessoas, no século 19 chamavam de uma "ciência natural". Ah! e como é estranho trabalhar segundo convenções do romance daquela era!
Eu diria que, mais do que Henry James, a figura de Robert Louis Stevenson foi a que mais me influenciou. Mas é algo que só notei quando já estava mergulhado no livro. Você não sabe muito bem o que está fazendo quando o livro se inicia. E depois se sente muito feliz quando nota que está participando de uma grande tradição, criada por seus mestres.
Folha - Ainda falando sobre seus mestres e a tradição, em um artigo para o "The New York Times Book Review", você afirmou que, nesse seu novo livro, escrevia sobre aqueles que uma escritora como Edith Wharton havia deixado para trás. Wharton escreveu sobre os nova—iorquinos bem nascidos, enquanto seu século 19 mostra um lado mais lúgubre da cidade.
Doctorow - É bem possível... Na verdade acredito que todo o livro é uma resposta a um livro que o precedeu. Quando você escreve, não o faz apenas para se comunicar com seu tempo ou com seus leitores. Escreve também para estabelecer um diálogo com os escritores que chegaram antes.
Folha - O tema central em "A Mecânica das Águas" continua sendo a cidade de Nova York. E para falar da cidade você fala também muito sobre jornalismo. O narrador da história é um jornalista, assim como seu personagem principal. Por que o jornalismo funciona como um subtema no livro?
Doctorow - Eu nunca fui um jornalista. Mas essa é uma profissão que me interessa profundamente. Conheço muitas pessoas que fazem esse tipo de trabalho.
A psicologia dessas pessoas se equivale à de McIlvaine. O jornalista é como um cão de caça que levanta uma história para seu editor. Jornalistas amam o excitamento de estar junto a "um fato que se desenvolve" e fazer uso disso. Com a inteligência e as habilidades intelectuais que possuem, certamente poderiam estar em uma outra profissão. E fazendo muito mais dinheiro do que no jornalismo (risos).
O fato de MacIlvaine ser um jornalista na verdade foi um grande presente ofertado pelo livro, que me possibilitou participar de algumas experiências com a idéia de jornalismo. Como quando McIlvane descreve a primeira página de um jornal diário, em sete colunas sobre uma página, cada uma contando uma determinada história. Como os enredos do livro, histórias que seguem paralelas e se conectam mais tarde.
Folha - Em seus livros anteriores, como "Ragtime" e "A Grande Feira" você usava intensamente sua memória pessoal. Dessa vez você abandona essa fórmula, pois seu novo livro descreve um outro século.
Doctorow - Bem, é que não sou tão velho assim para chegar até outro século (risos). Eu não precisei voltar até o século 19 porque na verdade o século 19 é visível nesta cidade. Nova York tem a fama de criar sempre algo novo, se reconstruir. Mas o que acontece é que alguns dos artefatos de um outro tempo são perfeitamente visíveis. Uma vez, em uma noite, uma forte neblina cobriu toda a cidade, até mesmo os arranha-céus. O que se via era uma cidade plana. Decidi então caminhar pela Broadway até o Soho. Essa era então a mesma cidade, as mesmas ruas pelas quais Herman Melville, Poe ou Walt Whitman também caminharam. Me senti então imensamente feliz naquela noite, na neblina.

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