São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Aids rouba força do 'Livro de Jó'

MARIO VITOR SANTOS
EDITOR DE REVISTAS

Não há como não se sensibilizar por um espetáculo como "O Livro de Jó", que o grupo denominado Teatro da Vertigem está apresentando numa ala desocupada do Hospital Umberto Primo, em São Paulo.
A companhia parece ter se especializado em descobrir locais inusitados para suas peças. Antes, na encenação de "Paraíso Perdido", foi uma igreja.
Desta vez, o drama bíblico é montado no local em que se costuma confinar o sofrimento e a solidão.
Em vez do vasto deserto bíblico em que o texto original situa a trama, este "Livro de Jó" se desenrola nos lúgubres e assépticos espaços de um hospital abandonado.
Como é muito comum quando se vai a um hospital, espera-se do lado de fora até que o drama, que dura 1h10, comece: duas grandes portas se abrem para a passagem do público, à entrada de um hall onde corpos nus, inertes, em várias posições, podem ser vistos através de vidros de enfermarias.
Ossos se amontoam em bacias. Atores brandem pedaços de carne viva. Uma melodia, cantada em hebraico, aguça o caráter religioso da encenação.
Há um certo ar de trem fantasma. De qualquer daqueles cantos escuros podem surgir personagens fúnebres, num lugar que já em si é atemorizador. Há um frisson criado pela iminência do contato com a morte.
A audiência assiste a peça quase sempre de pé, percorrendo salões, enfermarias, escadarias e corredores.
Na história original, Jó é homem abastado e alegre, íntegro e reto, que teme a Deus e se afasta do mal. Mas Satanás, filho de Deus, de volta de uma de suas andanças a esmo pela Terra, desafia o criador —ambos chegam a fazer uma espécie de aposta— a testar a fé do exemplar Jó, submetendo-o a todo tipo de flagelos.
Javé aceita a proposta de Satanás. Cai do céu o fogo de Deus, Jó perde família, riquezas e, em seguida, a saúde.
O próprio Javé aparece, antropomorfizado, junto com sua sua contraparte, Satanás, a semear a desgraça entre os que cercam Jó. Javé e Satanás vestem uniformes hospitalares.
Chagas malignas surgem sob a pele dos pés à cabeça de Jó. Ele apanha um caco de cerâmica para se coçar, senta-se no meio da cinza.
A mulher pede que ele abandone a integridade, amaldiçoe Deus e se recolha ao repouso da morte. Jó se recusa. Inicia um agudo debate com Javé. Clama a Deus que revele as razões para tanto sofrimento.
Três amigos seus revezam-se a tentar dissuadi-lo de resistir à dor e desafiar a Deus. Se ele foi castigado, é porque algo de grave cometeu: "Por que fazer da morte um triste espetáculo de rebeldia?", pergunta um deles, chamado Sofar.
Mas Jó insiste. Fraco diante da imensidão da divindade, o espectador é compelido à solidariedade com sua figura diminuta.
No centro de tudo ilumina-se um conflito, como assinalou Carl Jung em seu livro "Resposta a Jó": "Javé fala de tal modo, sem levar Jó em consideração, que não é difícil perceber o quanto Ele se preocupa consigo mesmo".
É nessa trilha de questionamento dos desígnios divinos, na tentativa de sua apreciação através de valores humanos, que se revela a fortuna do texto.
A estratégia de Jó para se manter vivo associa a submissão ao arbítrio divino com um confronto no terreno do direito e da moral. Ao infinito das intenções e dos poderes sagrados, que ele aceita, Jó contrapõe a busca de uma ética humana, secular.
Javé não é homem. Em si, ele reúne o bem e o mal em proporções incomensuráveis. É dessa oposição que retira dinamismo. Envolvido no debate com Jó, Deus surge mais próximo da humanidade, que reivindica alguma mediação para o seu poder.
Diante de toda a imensidão divina, Jó insiste em procurar as razões de sua dor. Em última instância, é para Deus que está reservado o banco dos réus neste tribunal.
Ao analisar o "Livro de J", o crítico Harold Bloom procurou escapar ao que chamou de processo de canonização religiosa segundo o qual uma obra essencialmente literária, como o "Livro de Jó", se torna texto sagrado. Para Bloom, da escrita à escritura, a vitalidade da obra é entorpecida pelo tabu e pela inibição.
Nessa linha de dessacralização do texto, Bloom avalia que a atitude do(a) autor(a) para com Javé se equivale à posição apreensiva e cheia de orgulho de uma mãe diante do filho favorito, poderoso e irascível.
Na representação dirigida por Antônio Araújo, com o Teatro da Vertigem, perde-se a tentativa de centrar a peça no questionamento dos limites do poder incomensurável de Javé.
O apelo à metáfora, o enquadramento do personagem nos limites característicos de um paciente terminal de Aids, acaba deslocando o núcleo dramático para linhas de grande efeito emocional, mas menor transcendência.
Tão grande é a empatia do tema, potencializada pela força da interpretação a que se abandona o ator Matheus Nachtergaele (Jó), que acaba surgindo uma tensão dramática diferente, que restringe o alcance da história original.
O espectador se sente tomado por um irresistível impulso solidário em relação ao pobre Jó que ali está nu, só, ao alcance da mão.
O sofrimento deste Jó parece até aliviar a enorme tensão que se acumula contra o Deus da história original. O vírus de hoje constitui razão objetiva, identificável, inapelável para a dor do Jó atual. O HIV livra a cara de Deus, dá uma razão à morte.
Além disso, o sofrimento da vítima, especialmente no caso da Aids, envolve a platéia. A dor, no caso da Aids, é hoje tão cercada de causas conhecidas, tão cientificizada de múltiplas maneiras, tão "objetiva", que contrasta e empobrece o misterioso arbítrio da divindade que produziu o drama de Jó na história original.
O magnetismo criado pelo sofrimento de um doente terminal com Aids acaba desviando o foco do ajuste de contas que Jó força para ter com Javé.
O Jó original está envolvido num jogo muito mais pesado. Ele também está morrendo, mas a dor o impulsiona ao conhecimento. Ele quer penetrar até a natureza de Deus, o que também significa "desdivinizá-lo".
Ao sabor dessas sensações, em pé, debruçado em contracorpos, apoiado em pilastras, espremido em corredores, o público entra em contato direto e exclusivo com a ação. Nada é confortável, embora seja envolvente, beirando a catarse, a falta de controle até.
Nas escadas, pendurados em parapeitos de janelas, membros do coro vestindo roupas brancas entoam cântigos religiosos. A audiência olha de baixo, como quem observa ou reza diante de imagens em nichos ou vitrais de igrejas.
Na cena final, a teofania de Jó, esse andamento ritual chega ao máximo. O público é conduzido a uma sala de cirugia, onde assiste Jó, deitado na mesa central, acercar-se de uma visão de Deus, o que tem um misto de loucura, êxtase e agonia.
A força da cena leva às lágrimas com facilidade, diante do contato tão próximo com a alma em estado de emoção pura. Só esta cena já valeria o espetáculo, que de resto é profissional nos figurinos, ousado na iluminação e prende o interesse da platéia do começo ao fim.
O diretor consegue com sucesso estabelecer um clima de julgamento, especialmente nas cenas que se passam no primeiro e segundo andares do hospital. Mas o andamento poderia ganhar mais dinamismo se entre as diversas partes não houvesse tantos hiatos, provocados também pela necessidade de se esperar que os espectadores se desloquem de um ambiente a outro.

A crítica de teatro é publicada quinzenalmente no Mais!

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