São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Conversas literárias sobre política e cinema

Doctorow é um escritor engajado sem ser panfletário

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

A melhor coisa que uma mãe judia pode dar a seu filho é um diploma de doutor. A segunda melhor coisa eu não sei exatamente qual é, mas imagino que um sobrenome como Doctorow é forte candidato ao posto. "Doctor Doctorow", já pensaram?
Edgar L. Doctorow não é médico. É escritor. Mas, como às vezes acontece com escritores, é uma presença terapêutica: um homem tranquilo, de voz calma (ainda que com certo tom melancólico). Algo que tenho constatado nas vezes em que nos encontramos, particularmente na última, em dezembro.
Tendo lido com grande entusiasmo seu último romance, "A Mecânica das Águas", ocorreu-me entrevistá-lo, já que eu ia a Nova York. Idéia não isenta de riscos. Escritores nem sempre são as melhores pessoas para fazer uma entrevista jornalística com outros escritores, e eu me dei conta disto no momento mesmo em que lhe telefonava para fazer a proposta, o que me causou certo embaraço. Mas aí funcionou a sua aguda percepção: "Vamos nos encontrar, e falaremos sobre o que você tiver vontade."
Nesse momento, e por uma instantânea associação de idéias, eu lembrei uma curiosa passagem da minha vida —médica, não literária. Estudante de medicina, eu tinha de colher a história clínica de um paciente baixado na Santa Casa. De posse da ficha clínica com seu longo roteiro, crivei o pobre homem de perguntas. O residente, que me observava, disse: "Se você deixar o homem falar, ele dirá tudo o que você quer saber."
Ora, era exatamente esta a mensagem de Doctorow: se falássemos à vontade, tudo aquilo que eu, sob forma de entrevista, indagaria, surgiria normalmente. Ou seja: Doctorow e o doutor encontraram a mesma solução.
Havia muito do que falar. Doctorow não é apenas um excelente ficcionista; é um intelectual, um homem envolvido com as questões de nosso tempo e com opiniões claramente definidas.
Perguntei-lhe o que achava da vitória republicana nas recentes eleições e ele mostrou-se francamente pessimista. Para ele, Newt Gingrich, o líder da maioria republicana no Congresso, é um forte candidato a presidente: sabe enganar, comentou com desgosto. E fez uma observação interessante sobre a política de contenção dos gastos públicos. Os republicanos, hoje, querem fazer economia com saúde e assistência social —mas não hesitam em pedir mais verbas para prisões e orfanatos (uma alusão à proposta de Gingrich de recolher os filhos de mães em "welfare" para instituições à moda Oliver Twist).
Embora não seja um homem de partidos ou de movimentos políticos, Doctorow pode ser enquadrado na categoria dos escritores engajados. Trata-se, como sabemos, de uma categoria que está em extinção, o que é uma pena; no seu melhor, o engajamento deixa de lado o panfletário para assumir-se como consciência crítica sem a qual a existência humana perde o sentido.
Este escritor, que vê em muitas passagens bíblicas a marca da contestação, é uma espécie de profeta "après la lettre". Não por coincidência um de seus livros mais conhecidos chama-se "O Livro de Daniel".
Mas o Daniel de Doctorow, que é Daniel Isaacson, vive nos Estados Unidos dos anos 50; seus pais refazem a patética trajetória do casal Rosemberg, Julius e Ethel, executados na cadeira elétrica depois de um processo polêmico e sombrio, marcado pela histeria anticomunista e pelo anti-semitismo.
O caso Rosemberg foi um triste capítulo na história da imigração judaica nos Estados Unidos, história da qual Doctorow dá testemunho em várias de suas obras. Como Saul Bellow e Norman Mailer, também filhos de imigrantes, ele encontrou na literatura a porta de entrada para a cultura americana. Como esses escritores, e como Joseph Conrad, valoriza o idioma ao qual é um recém-chegado.
Daí a qualidade de sua ficção. Daí os numerosos prêmios que recebeu, e a posição que ocupa, de professor de literatura na New York University.
Suas obras se caracterizam não apenas pelo rigor formal, como também pela força das imagens. Doctorow é um escritor visual: vários de seus livros foram adaptados para o cinema (o último é "Billy Bathgate"), ele próprio colaborando no roteiro.
Para minha surpresa, contudo, diz que nenhum desses filmes o satisfez, nem mesmo "Ragtime", dirigido pelo excelente Milos Forman; chegou até a brigar com diretores. "Estou convencido", afirma, "que cinema é uma coisa, literatura outra".
Numa época em que tantos escritores procuram ampliar seu público através do cinema ou da TV, esta posição é insólita.
Aos 64 anos, E. L. Doctorow começa a se preocupar com a idade. Mas a sua preocupação refere-se à literatura, não à sobrevivência. Como todo escritor que se preza, não está satisfeito com o que produziu, e pensa numa grande obra que sintetize a sua experiência ficcional e sua visão de mundo.
Inquietude saudável, modéstia exemplar. Qualidades não tão frequentes, que se unem ao talento para fazer de Doctorow um expoente da modesta literatura norte-americana.

Texto Anterior: Romance mostra os traumas do tempo
Próximo Texto: Aids rouba força do 'Livro de Jó'
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.