São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Os modismos da economia

CARLOS ALBERTO SARDENBERG
DA REPORTAGEM LOCAL

Como o governo mexicano pôde ser tão incompetente? A resposta provável é que os tecnocratas acreditaram em seu próprio marketing.

Nenhum dos grandes bancos de investimentos previu a crise que apanhou o México em dezembro. Mas todos sabiam o que estava acontecendo no país. Seus relatórios apontaram de maneira exata tanto o lado positivo quanto as dificuldades políticas e econômicas. As conclusões, entretanto, foram as mais otimistas.
A questão, portanto, não é saber por que os analistas não perceberam os problemas que levariam à crise de dezembro. Eles os perceberam. A pergunta é outra: por que não deram o devido peso às dificuldades e continuaram navegando na onda de otimismo?
Uma primeira resposta decorre da própria pergunta. Em economia, como em todas as ciências humanas, os modismos prevalecem. Certas teorias ou simples pontos de vista permanecem dominantes até serem arrasados por fatos que parecem supreendentes, embora estivessem bem à vista.
O resultado final desse tipo de episódio é criar um novo modismo, mais ou menos contrário ao anterior. O pós-México é dizer que o chamado modelo neoliberal, seja lá o que isso signifique, sempre dá errado e, por isso, o Brasil também vai naufragar.
É equívoco tão grande como foi dizer que tudo ia bem no México.
Por partes, cabe analisar primeiro como se compunha o ponto de vista sobre o México. Tome-se, para exemplo, o boletim "Prospects", que o Banco Suíço enviou para seus clientes em dezembro.
A manchete dizia: "México - candidato a investimento de qualidade". O texto informava que o México havia superado a prova da estabilidade econômica e estava bem avançado nas reformas estruturais, razão pela qual já tinha direito a frequentar o seleto grupo dos países desenvolvidos.
Nas duas páginas finais do relatório, entretanto, o Banco Suíço listou dois "desafios" que o governo mexicano deveria enfrentar: o forte crescimento das importações, sem a contrapartida das exportações, e a falta de poupança e investimento internos.
Acrescentava que essas dificuldades eram contornadas pela entrada de capitais externos, mas alertava: "As fontes de financiamento externo não podem ser consideradas um substituto de longo prazo da poupança interna".
Está aí, antecipado, exatamente o que viria a acontecer ao México. As fontes externas começaram a falhar, antes que se resolvessem os problemas da balança comercial e da falta de poupança interna.
Todos os grandes investidores também estavam de olho na guerrilha de Chiapas, uma "calamidade política", fonte de extrema instabilidade, como definiu o relatório, também de dezembro de 1994, do Bear Stearn, outro grande banco de investimento.
Mas todos alimentavam a expectativa de que o novo governo mexicano saberia lidar melhor com a guerrilha. "Pior do que está não pode ficar", escreveu o Bear Stearn. Ficou.
Aqui se mostra outro modismo até então dominante no cenário mundial —o de que o governo mexicano era formado por uma elite intelectual e burocrática de primeira, capaz de gerir o país com extrema competência.
Esse modismo determinou as análises sobre a taxa de câmbio. Todos os analistas, sem exceção, apontaram o problema —o peso, a moeda mexicana, estava sobrevalorizada em relação ao dólar— e o ambiente —havia especulações sobre uma possível desvalorização.
Nesse quadro, os consultores do CS First Boston e do Chase Manhattan, outros dois grandes bancos, discutiram a possibilidade do novo governo mexicano aplicar de imediato uma "pequena" desvalorização no peso, para fazer cessar de vez as especulações.
Mas os próprios analistas chegaram à conclusão de que essa política seria um grave erro. Ao invés de interromper as especulações, tal era seu argumento, uma pequena desvalorização seria uma espécie de confissão do governo quanto à fragilidade de seu sistema monetário. E isso faria com que os investidores começassem a vender pesos e comprar dólares, o que derrubaria a moeda mexicana.
Ou seja, os analistas do Chase e do First Boston anteciparam exatamente o que viria a acontecer. Mas acharam que o governo mexicano, sendo tão competente, não entraria nessa canoa furada.
O analista do Chase, Lawrence Brainard, foi preciso quando descartou a hipótese de desvalorização: "Ninguém em sã consciência poderia implantar uma medida como esta".
Pois o governo do presidente Ernesto Zedillo fez pior. Não apenas praticou a pequena desvalorização, como o então ministro da Fazenda Jaime Serra a anunciou em um programa de televisão popular, como se fosse coisa banal.
Seria como se o ministro Pedro Malan anunciasse a desvalorização do real no programa dominical de Sílvio Santos. O conteúdo e a forma desse tipo de anúncio geraram a desconfiança que levou à maxidesvalorização do peso de 40%.
Seria o caso de perguntar como o governo mexicano pôde ser tão incompetente. E a resposta mais provável é que os tecnocratas mexicanos acreditaram em seu próprio marketing.
Exageradamente autoconfiantes, acreditaram que manteriam a confiança dos investidores internacionais, qualquer que fosse sua política. E vem daí uma primeira lição a tirar, que vale bem para o caso brasileiro: os economistas do governo precisam tomar doses diárias de humildade, desconfiança e autocrítica, mesmo quando pilotam planos bem-sucedidos.
Há outras lições, mas certamente não a de que o exemplo mexicano tornou-se inteiramente negativo, como querem os economistas do Parque Jurássico, como tem dito Mailson da Nóbrega para se referir aos teóricos da economia estatizada, protegida e fechada.
É evidente que os economistas "jurássicos" estão usando o caso mexicano para reforçar a frente política contra as reformas do Estado, as privatizações e a abertura da economia.
Como instrumento de ação política, essa atitude pode fazer sentido. Mas não serve para nada quando se trata de buscar uma análise objetiva. Afinal, não é porque o México quebrou que o setor público brasileiro se equilibrou ou as estatais passaram a ser eficientes.
Visto depois da crise, o que o México fez de errado foi exatamente o que os analistas apontavam antes: 1) déficit comercial alto e por um tempo prolongado; 2) falta de poupança interna; 3) dependência da entrada de capitais de curto prazo; e 4) o que o economista Rudger Dornbusch chamou de má administração da moeda.
Aliás, é também de Dornbusch a observação segundo a qual é preciso distinguir no caso mexicano as boas reformas da má administração da moeda.
Este é o ponto que mais interessa ao Brasil neste momento. O país não terá dificuldade para fazer superávits comerciais; tem capacidade de gerar poupança interna; e tem indústria sólida (muito mais que México e Argentina, por exemplo) e capaz de atrair investimentos de longo prazo, como já está atraindo.
Fica o problema da taxa de câmbio. Que o real está valorizado em relação ao dólar, não há dúvida. Mas isso, primeiro, não dispensa as reformas. E, segundo, não significa que é preciso desvalorizar o real imediatamente e nem que uma eventual desvalorização traria desastre igual ao mexicano.
O próprio governo mexicano poderia ter feito um plano de desvalorização consistente, se incluísse a mudança da taxa de câmbio num conjunto de medidas destinado a dar novo impulso no programa de estabilização.
O governo brasileiro tem condições de fazer isso com o real, mas não neste momento. É que o Brasil tem um problema com a moeda e ainda está cru nas reformas.
Verdade que a moeda, o câmbio valorizado, neste momento, é um problema, pois dificulta exportações e a competitividade da indústria local, mas também uma solução, porque segura preços.
Muitos perguntam: suponhamos que o governo segure o real valorizado por um tempo e, ao final, não consiga realizar as reformas.
Aí, por certo, é o desastre. Mas sem as boas reformas, o desastre virá de qualquer modo, com real valorizado ou desvalorizado.
Ainda, muitos dizem: com o real valorizado, o desastre será maior. Pode ser. Mas que diferença faz morrer de 40 ou 50 tiros?

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