São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Homens em crise

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Para uns não há crise, porque desde que o mundo é mundo, e como já dizia Freud, os homens querem sexo

Toda uma literatura de homens, escrita por homens, para homens, desde o fim dos anos 80, aponta para uma suposta crise de identidade masculina do lado de cima do Equador —os EUA, onde as crises parecem se formar ou se manifestar. Discute-se primeiro se há de fato crise, se o homem foi afetado pelo surgimento de uma geração de mulheres de nariz empinado, cria dos movimentos feministas.
O homem em crise seria o que se dá conta do descompasso: como se, enquanto a mulher cuidava de se emancipar, atarefada entre a casa e o trabalho, a maquiagem e o orgasmo, o homem tivesse ficado parado no meio da cozinha, sem saber o que fazer, com um pano de pratos nas mãos até solidárias.
Para uns não há crise, porque desde que o mundo é mundo, e como já dizia Freud, os homens querem sexo: sexo três vezes ao dia, de preferência com três mulheres diferentes, sexo novo, sexo sempre. Como é impossível, toda a civilização segue sendo essa colossal obra da sublimação: foguetes, livros, estádios de futebol, computadores, antibióticos, usinas hidrelétricas, a ciência e a arte se alimentando do hiato deixado pela impossibilidade de sexo sempre.
Para esses não há crise, apenas uma arenga de sapos preocupados em como inchar o peito para atrair as fêmeas —que continuam as mesmas, dizem, seguros de si.
Para outros a crise não só existe como é grave, porque obriga os homens a tocar na crosta endurecida de sua afetividade. Homem ainda prefere dividir com outro homem coisas como futebol, a bebida ou o churrasco do domingo, como se não tivessem interioridade", diz P., 34, recém divorciado.
"Crise de identidade", para a maioria dos homens parece soar como coisa localizada —a crise dos 40, por exemplo, de caráter predominantemente sexual, relacionada ao medo da impotência—, ou pura "viadagem".
Com segurança, fala sobre isso F., 31, casado: "Não sei se é viadagem. Mas não tem nada de tão novo assim. Imagino que a diferença entre o homem de hoje e de 20 anos atrás é o fato de ele lidar com a verbalização do desejo da mulher. Para gente da minha idade, que cresceu com isso, não há problema. Deve ser coisa dos 40".
Alguns, como N., 45, casado, acham que a crise existe, mas os homens custam a reconhecê-la: "há resistência nos homens em admitir o conflito, porque significaria admitir uma fraqueza inaceitável ainda hoje para eles".
"Viadagem", declara L., 33, solteiro, horrorizado com a possibilidade de que haja um movimento auto-intitulado "masculinista": "Me desculpe, mas homem não precisa disso. A gente e continua dominando o mundo. Não que eu ache bom. Mas é assim. Isso para mim é pura viadagem."
A literatura da crise de identidade masculina tem vendido como água nos Estados Unidos. Aqui por essas paragens —terra de meu avô, digamos, sertanejo, "neto de ciganos e neto de selvagens", como diria Graciliano Ramos—, será que venderia? Verdade que a crise parece ser burguesa (como todas as crises que não de fome, sede e subsistência), crise do homem de papel, do homem de jornal e vidro, do yuppiezinho de óculos e idéias obscuras.
Mas aqui ela parece ser vista com enorme desconfiança, como se a mera possibilidade da existência da crise já significasse uma ameaça à masculinidade, à virilidade. Todos os entrevistados proibiram a publicação de seus nomes.
As falas da maioria deles terminavam sempre numa polarização macho/não-macho. Como se o assunto "homens" só pudesse ser tratado a partir de uma situação reconhecidamente masculina como um campo de futebol, por exemplo —pela lógica da grama, da bola, do drible e do gol fica-se mais à vontade. Qualquer outra abordagem do universo masculino —debates, teorias— soava ameaçadora a ponto de aquela massa de homens de arquibancada poder, como num passe de mágicas, se transformar numa massa de homens de boate gay, faces intercambiáveis de uma mesma moeda.
As reações desses homens ao tema me lembraram uma experiência. Visitando uma boate gay, olhei lá de cima, do andar superior, aquela excitante massa de homens na pista de dança lá embaixo. Cinco ou seis mulheres, lésbicas ou curiosas, entre duas centenas de salientes pomos-de-adão.
O amigo que me acompanhava olhou espantado e constrangido, achando que eu vomitava o ambiente, numa manifestação de rejeição. Disse que não, era a bebida. Ou foi um pouco da mistura do mundo batendo no estômago: meu pai, os tios militares, um fascínio infantil por homens de uniforme.
Imaginei que a crise de identidade dos homens, se existe, deve passar pelo peso de um uniforme, pela necessidade dos pastos demarcados, pelo olhar pasmado diante da mistura do mundo, como dizia Guimarães Rosa.

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