São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Eles pensam que sabem

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os homens nunca souberam o que querem, mas sempre acharam que sabem. As mulheres sabem, mas acham que nunca sabem. É com essa colocação provocativa que o psicanalista Luiz Tenório Oliveira Lima, 54, inverte a clássica pergunta formulada por Freud sobre o que querem as mulheres.
Segundo ele, a psicanálise precisa rever com urgência alguns princípios, como aquele que postula a inveja das mulheres em relação ao pênis que não têm. A inveja fundamental, diz Tenório, é a que os homens têm da única criação biológica verdadeira —o poder de engendrar outro ser—, que, até segunda ordem e apesar dos avanços da biologia molecular, continua sendo uma prerrogativa do sexo feminino.
Nascido na Bahia, onde se formou em psiquiatria, Tenório é membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Vive na capital paulista há 26 anos. Na entrevista que segue, ele sustenta que hoje, passado o furacão feminista, talvez estejamos percebendo que muitas das conquistas resultaram no mero acúmulo de funções da mulher, que além da vida doméstica, tem que se desdobrar para na esfera do trabalho. Mas, longe de ser uma uma vitória de Pirro das mulheres, esse processo de afirmação feminina na cena pública tem para Tenório um efeito saudável sobre o sexo masculino.

Folha - Há uma extensa literatura que se avoluma desde os anos 80 sobre uma suposta crise de identidade masculina. A que você atribui esse processo?
Luiz Tenório - Que tipo de masculinidade, que tipo de homem é este que estaria em crise? Essa é a primeira pergunta. Em termos mais genéricos, pode-se dizer que desde o século 16 há um declínio progressivo de valores que estão associados à masculinidade pela civilização mediterrânea, a figura do macho de que a América espanhola, a América portuguesa, a Península Ibérica e a Itália são representantes. Há por outro lado uma progressiva planetarização dos valores de origem anglo-saxônica. Esse valores envolvem, em termos muito amplos, igualdade de condição entre os sexos, participação da mulher no mercado de trabalho etc. Todas essas questões estão ligadas à cultura protestante.
Folha - Mas isso está muito ligado à questão cultural, passa ao largo da diferença biológica entre os sexos.
Tenório - Eu acho que há uma confusão entre este aspecto dos costumes, dos mores, da questão envolvendo o papel da masculinidade, do macho, e a questão do desejo entre os dois sexos. Essas são perenes. Que formas ela assume hoje é algo a ser discutido.
Folha - Como assim?
Tenório - Há uma diferença que é irredutível. Qualquer possibilidade de conhecimento do mundo externo, dos dados da realidade, passa pelo reconhecimento do outro sexo. É uma ilusão supor que essa diferença será algum dia abolida. Às vezes se confunde a abolição das diferenças no plano social, nos costumes, nas leis, no plano jurídico, com o problema essencial, que aliás não é de natureza só biológica. A questão da diferença entre os dois sexos, a tal "petite différence", não é tão pequena como pode parecer.
Folha - Por falar em "pequena diferença", seria possível afirmar que os homens têm mais apetite sexual, no sentido animal, do que as mulheres, que teriam antes outra espécie de carências? Há que sustente que, como os homens não podem satisfazer sua fome sexual a todo instante, sublimam construindo foguetes, indo à lua, fazendo guerras, construindo e destruindo civilizações.
Tenório - Não há duvida de que os homens, pelo menos quantitativamente, aparecem como mais capazes de empreendimento, como mais empreendedores. Mas isso é sucedâneo de uma coisa que só a mulher pode, que é ter filhos. É uma condição do sexo feminino engendrar outro ser e portar este ser dentro de si. O homem é apenas o vetor deste processo, como um besouro ou uma vespa. É isso que gera uma necessidade imperativa ou imperiosa do homem de compensar essa falta. Daí o fato de a criação, seja no plano artístico, intelectual ou no plano dos empreendimentos, das obras, em algum nível espelhar a competição invejosa do homem com a capacidade germinativa da mulher, esta sim real, biológica, verdadeira.
Folha - Mas o que você diz ser a "única criação verdadeira" não assumiu no discurso da liberação feminina um caráter opressivo? Aquela história do fardo da gravidez etc.
Tenório - O Thomas Mann, num ensaio magnífico escrito nos anos 30, "Sobre o Casamento", fala que o artista é artista porque é infértil. Isso está ligado à homossexualidade e ao homoerotismo, porque a verdadeira criação supõe a fecundidade biológica.
Isso escrito nos anos 30 é extraordinário. O Caetano citou um trecho desse ensaio no filme "Cinema Falado". A questão é a seguinte: mesmo quando o valor maior passa a ser o empreendimento, mesmo quando as mulheres competem com os homens no seu próprio terreno, a empresa biológica, inerente ao sexo feminino, não desaparece, fica como problema nesse mundo aparentemente masculinizado. E aí se perguntar: o que querem os homens, afinal?
Folha — E a resposta a isso?
Tenório - É preciso inverter a questão de Freud e perguntar mesmo o que querem os homens. O homem sempre quis poder criar como a mulher sempre criou. O homem quer algo inalcançável e nesse sentido ele é muito mais insatisfeito do que a mulher.
Eu não concordo com a tradição de comentaristas psicanalíticos que dizem que a mulher nunca sabe o que quer. Pelo contrário, as mulheres sempre souberam o que quiseram. Os homens é que realmente não sabem. Eles acham que sabem, mas não sabem. As mulheres acham que não sabem, mas sabem.
Folha - Isso não subverte os princípios da psicanálise?
Tenório - Há uma superstição no meio psicanalítico que precisa ser encarada. Refiro-me à questão de qua a mulher é o território obscuro, que a mulher não sabe o que quer, que a inveja do pênis é o essencial, isso são formações ideológicas cristalizadas, que perderam frescor. Não podemos ficar vinculados ao paradigma que a psicanálise estabeleceu na origem.
Folha - O homem atual, que de alguma forma resultou da liberação da mulher, tem mais consciência da sua falibilidade? Ele é mais frágil, mais feminino?
Tenório - O macho é um estereótipo em crise. Acho que é um processo inexorável. A tradição voluntarista, prometéica, está em crise. Há coisas que não dependem da vontade dos homens.
Hoje os homens têm mais consciência de que não possuem referências muito sólidas. Para mim é um progresso. Ao perceber que não sabem direito onde estão, estão mais próximos da verdade do que antes. Este é o ponto. Quanto mais me dou conta que não tenho referências sólidas, se suporto a angústia de não ter mais referência, não preciso criar ilusões de que estou num lugar sólido. Este lugar é um conhecimento genuíno.

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