São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Sexo, esporte e hipocrisia

Conteúdo erótico do esporte jamais é discutido

JOE CLARK
DO "VILLAGE VOICE"

A homofobia na mídia de esporte é sutil e raramente explícita

Sempre que se assiste a um programa esportivo na TV ou se folheiam as páginas de esporte em um jornal, percebe-se que a mídia esportiva gosta de mostrar a coisa de duas maneiras: os atletas são retratados como sexy, mas os redatores e locutores raramente são francos quanto a isso.
Eles fazem de tudo para suprimir qualquer sinal de homossexualidade, e atenuam questões como a ameaça representada por repórteres do sexo oposto dentro dos vestiários. Em resumo, minimizam as histórias que possam demolir um mito central da mídia esportiva: que esporte e sexo não se relacionam.
Mas as pessoas do mundo real, incluindo os próprios atletas, vêem outra história. A pergunta é: quando a cobertura esportiva vai começar a retratar a realidade?
Em primeiro lugar, há uma distinção a ser traçada entre identidade e ação. Sexy se é. Atletas agem. Sempre que há entrecruzamento desses dois estados, pode-se ouvir o ranger de arquétipos por todo o caminho que vai do vestiário até as arquibancadas rebeldes. O mundo do esporte ainda é discriminatório quanto a sexo. As mulheres conseguiram modestos avanços ao ganhar o direito de praticar os mesmos esportes que os homens, mas homens competem contra homens, e mulheres contra mulheres. Isso significa que qualquer referência à sexualidade implica homossexualidade, o que é ameaçador para muita gente hetero, principalmente rapazes. E quem controla as páginas de esporte?
Quando a mídia esportiva, área dominada por homens, tem de lidar com corpos masculinos sensuais é que surge o problema. No último verão, por exemplo, a Adidas (canadense) planejou um anúncio com todo um time de futebol masculino "au naturel" (exceto pelos tênis Adidas, claro).
Uma bola de futebol, troféus e mãos virilmente fechadas em concha cobriam os membros dos membros do time North York Kick, de Toronto. Era um anúncio inteligente e, para as convenções da mídia esportiva, inofensivo.
Embora o anúncio da Adidas tenha sido aprovado pelo escritório da "Sports Illustrated" ("SI") em Toronto para publicação em uma das suas ocasionais edições canadenses, isso nunca aconteceu. Em Nova York, o editor-chefe da "Sports Illustrated", Mark Mulvoy, viu o anúncio, ficou furioso e o derrubou na última hora. A mídia canadense enlouqueceu, atacando a decisão como exemplo de que os americanos queriam impor sua rigorosa moral ao Canadá e, é claro, como um padrão duplo.
Mais tarde, a Adidas retirou todos os seus anúncios da "SI" canadense, em protesto, embora a Adidas dos Estados Unidos continue a anunciar na edição norte-americana.
A Adidas colheu mais publicidade com esse acesso de fúria da "Sports Illustrated" do que jamais teria adquirido via simples difusão em uma revista. Ou basta considerar a cobertura do velocista Ben Johnson. O apelido "Big Ben" (Grande Ben), comumente ouvido em noticiários esportivos e em bate-papos de bebedouros —antes de ser descoberto o uso de esteróides que instantaneamente detonou seu status de herói olímpico—, resume a reverência sentida pelos espectadores ao observar a musculatura de Johnson.
Não faltou oportunidade para observar a grandeza de Johnson. Os repórteres fotográficos de esporte não se cansavam de Ben. Ele sempre achava ótimo exibir seu físico em ambas as versões, a natural e a estufada por esteróides. Essas fotos dispõem de maneira icônica os temores e obsessões dos repórteres de esporte, para quem Ben era um símbolo fácil. Nascido e criado na Jamaica, de sotaque ainda mais visível por causa de uma gagueira, e implicitamente caracterizado como de inteligência modesta durante as conferências patrocinadas pelo governo canadense sobre uso abusivo de esteróides, Ben Johnson passou a ter sua imagem difundida como um galopante estereótipo racista. Um homúnculo negro desarticulado e pateta, que já teria voltado para a roça não fosse pelo esporte.
Ben era tudo que o típico macho branco varapau, redator de esportes, secretamente teme ser (língua presa, nada esperto) e deseja ser (negro, forte, musculoso, exibicionista, sexual e bem-sucedido por isso).
Não é preciso procurar muito para encontrar outros exemplos de redatores de esporte que veneram corpos de craques masculinos —basta procurar palavras poéticas e fotos sexy nas páginas de esporte. Não estou me referindo aqui a "fotos engraçadas": instantâneos de Isaiah Thomas e Magic Johnson se beijando, Wayne Gretzky abraçando Mario Lemieux etc. Até mesmo os homófobos provavelmente acham essas fotos engraçadas, e elas de fato não significam muita coisa. Fotos de heterossexuais —ou pelo menos supostos— famosos em incidentais poses "gays" são tão óbvias que lhes falta significado.
O gênero da fotografia de esportes homoerótica, do mesmo modo, está se tornando cada vez mais difundido. Os irmãos Charles e Ed O'Bannon, jogadores de basquete da UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles) deixaram que Jerry Avenaim os fotografasse para a "Vanity Fair" sem camisa, a testa de um colada na do outro, e Ed com a mão em volta do pescoço de Charles.
O que falta em tudo isso é um reconhecimento aberto da sensualidade dos craques musculosos. Nenhum redator, editor ou comentarista virá a público, digamos assim, afirmar que um certo atleta é sexy mesmo depois de ter falado de seu corpo ou tê-lo mostrado sem camisa ou em alguma pose excitante —equilibrando-se num trampolim, irradiando energia desde os primeiros bloqueios, batendo na água com toda a força etc.
Então novamente talvez "sexy" não seja a palavra correta aqui. Talvez eu esteja falando de algo mais estrutural e abstrato, como uma espécie de admiração, inveja ou ciúme entre pessoas que têm as mesmas partes no corpo. Mas seja lá qual for o sentimento, não vamos encontrá-lo abertamente expresso. É visto como antiprofissional por não ser objetivo, ou pelo menos está fora do reino da opinião aceita entre comentaristas esportivos.
Esse é um erro fundamental, e carregado de ironia. O esporte permeia a nossa cultura, e na última década começou a permear a economia também, com salários subindo até o teto e a mercadoria esportiva lucrando bilhões. Mas os atletas vêm necessariamente de algum lugar, e esse lugar é a raça humana. Em outras palavras, os atletas somos nós. A sexualidade é parte da vida. Os próprios atletas parecem aceitar isso; no extremo mais remoto do espectro, basta pensar nos relatos de Magic Johnson e Wilt Chamberlain sobre seus milhares de parceiros.
O que não é aceito é o componente erótico do espectador de esportes. Sallie Tisdale e Karen Karbo escreveram na "Vogue" sobre ser fãs de esportes e "o desprezo —às vezes velado, às vezes não— de fãs masculinos para com as fãs femininas. Se fazemos algum comentário sobre a beleza ou os atrativos físicos de um jogador, ou consideramos os efeitos que seus problemas conjugais estão acarretando a sua porcentagem de gols no campo, somos acusadas de 'não entender nada"'.
Pelo contrário, são elas que de fato entendem. Se uma matéria objetiva sobre quem ganhou o jogo de futebol ontem não será realçada por se alongar nas características físicas dos jogadores, um perfil pessoal é, literalmente falando, história bem diferente. Um bom redator ou repórter pode reunir a beleza, o preparo físico, o carisma etc de um atleta em uma matéria de modo natural.
Entretanto, para que esse tipo de abertura se torne mais comum, tem que se tornar mais aceitável a expressão de opiniões que sejam homofílicas e homoeróticas, se não homossexuais em si.
A homofobia na mídia esportiva é sutil e raramente explícita. Caso em questão: quando Bob Probert, do Detroit Red Wings, referiu-se a Wendel Clark, do Toronto Maple Leafs, como "Wendy" numa entrevista de TV, surgiram rumores sobre a homossexualidade de Clark na imprensa marrom —a saber, na revista satírica e sensacionalista, mas sempre muito precisa, "Frank", de Otawa, que dizia:
"Clark gosta de um estilo de vida alternativo, diz o boato, e da companhia íntima de pianistas vorazes como o extravagante patinador Toller Cranston (...) Imagine a resposta dos homofóbicos fãs de hóquei canadenses se isso algum dia vazar."
Embora por debaixo do pano, numa reportagem sobre Clark o ano passado, o "Globe and Mail" repudiou o boato, citando a indagação de Clark sobre como, em primeiro lugar, o rumor teria surgido. Em abril do ano passado, o próprio Clark disse a Rosie DiManno, do "Toronto Star": "Eu não sou gay (...). Eu não vivo com Toller Cranston. Eu não moro na casa de Toller Cranston. Eu nunca nem vi o cara." Tudo bem.
O que essas matérias não disseram é mais interessante do que o que disseram. Por exemplo, por que o "Globe" sentiu necessidade de refutar um rumor que originalmente não noticiou? A reportagem de DiManno prosseguia, descrevendo o fato de Clark ter sido chamado de "Wendy" como "um horrível insulto a esse esporte", o que não é exatamente um toque de trombeta anunciando o fim da homofobia no mundo dos craques.
Pior que isso, nada na matéria investigava como seria a vida para um Leaf gay sob o domínio do treinador Pat Burns, que declarou à revista "L'Actualité", de Quebec, em 1992, que "um homossexual confesso jamais seria aceito no hóquei. Nunca". Por quê? "Porque é um ambiente onde as pessoas estão frequentemente nuas! (...) Você tem que entender a atmosfera num vestiário de hóquei. Seria difícil para mim, para ele, para o time, porque é um esporte de macho."
O que realmente interessa não é se Wendel Clark é ou não gay, mas sim por que importa em primeiro lugar e como um homofóbico confesso como Pat Burns trataria um torcedor gay. Mas não se encontrava qualquer análise dessas questões cabeludas. Era mais fácil simplesmente noticiar um rumor e deixar Clark negá-lo.
Não se encontram matérias na "SI" ou nos quadros da ESPN que falem da homofobia nos esportes ou sobre craques gays e lésbicas, pois isso só faria crescer o reconhecimento de um elo entre sexo e esporte.
Mas ponha-se uma bicha confessa em um time, especialmente um time de homens, e de repente se é forçado a admitir que Fulano de Tal, jogador de beisebol, poderia estar atraído por Sicrano de Tal, jogador de beisebol. Se o sexo é mantido longe do esporte, ninguém sequer pestaneja. É somente quando a sexualidade se revela como parte da experiência do esporte que o excremento gira no ventilador.
Exemplo: mulheres nos vestiários masculinos. Foi ainda em 1974 que a locutora de rádio Anita Martini ganhou sua primeira batalha por igualdade de acesso ao vestiário dos L.A. Dodgers. (Esse direito foi mais tarde fixado na lei americana.)
O mundo não acabou quando foi dada às repórteres mulheres a mesma oportunidade que aos homens de entrevistar atletas e treinadores nos vestiários —ou, do mesmo modo, quando os repórteres homens puderam entrar nos vestiários femininos.
Mas a questão voltou a surgir em 1990, quando Victor Kiam, um homem que gostava tanto dos New England Patriots que os comprou, decretou que mulheres estavam proibidas de entrar no vestiário do time. Lisa Olson, do "Boston Herald", não somente opôs-se à proibição como também aguentou o rojão das piadas sexuais feitas pelos jogadores do Patriot. Olson recorreu à liga nacional de futebol e venceu; a liga arrecadou cerca de 70 mil dólares em multas contra os Patriots e vários jogadores pela quebra da política de igualdade de acesso aos vestiários.
Seguiu-se uma enxurrada de editoriais de temas previsíveis: "o vestiário é um santuário atlético, onde repórteres não são benvindos, são intrusos", ou então "bons repórteres absolutamente não precisam de citações pós-jogo". Christie Blatchford, do "Toronto Star", escreveu que "bolinagem não é comigo, e o mesmo pensam outras mulheres redatoras de esporte que conheço".
Mas há uma distinção a ser feita entre investir óbvia e deliberadamente contra um vestiário para olhar homens nus e fazê-lo incidentalmente.
O fato é que há homens sexy no vestiário de um time profissional, muitos dos quais não estarão vestindo muito mais do que o time patrocinado pela Adidas. A persistente negativa de repórteres mulheres (heteros) de que ocorra qualquer atração sexual —até mesmo um largo sorriso— num vestiário é simplesmente inacreditável.
Aferrar-se a essa história é parte do problema. Não é necessário salientar ou enfatizar ou exagerar a intera(tra)ção humana; é necessário ao menos reconhecê-la —se não em todas as matérias que um repórter registre, pelo menos em metamatérias sobre repórteres do sexo oposto nos vestiários.
A beleza dessa aproximação reside em se evitar uma sutil homofobia: são sempre as mulheres nos vestiários masculinos que são acusadas de pensamentos obscenos, nunca os repórteres homens. Repórteres homens e mulheres, cinegrafistas, fotógrafos e atletas, todos podem se achar atraentes entre si. Nunca se pode dizer quem fantasia com quem. Se os sentimentos são recíprocos, ou mesmo declarados, é outra questão, mas que não atribuamos a pecha de uma suposta pilhagem sexual às mulheres.
Negar a sexualidade do esporte perpetua o mito de que os atletas —e os jornalistas esportivos— são seres humanos incompletos. Uma vez que se admita que as mulheres podem se sentir atraídas, ainda que evasivamente, por jogadores homens, deve-se admitir que os homens podem se sentir atraídos também. Isso faz cair por terra a ficção cuidadosamente construída de que o esporte é uma reserva assexuada, e a ficção correlata de que todo mundo nos esportes é hetero.
Demolir esses mitos é urgentemente necessário. Independentemente do fato de que o esforço físico nos exercícios e no sexo são experiências comparáveis em muitos aspectos, sexo e esporte são parte da vida. Se a combinação dos dois se manifesta em repórteres femininas ou em treinadores homofóbicos, a mídia esportiva está simplesmente escavando cada vez mais fundo o mesmo velho buraco ao se recusar a tocar no assunto.

Tradução de MARILENE FELINTO

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