São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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O falo armado e o 'novo homem'

Livros discutem o masculino na guerra e no cinema

MANOHLA DARGIS
DO "VILLAGE VOICE"

O falo encolheu e virou pênis —pelo menos é o que me contam. Há anos as feministas enlouquecidas por Lacan e uma legião de enganadores pós-estruturais vêm discutindo se o falo é, de fato, um pedaço de carne enrugada. Sem dúvida a ampla divulgação do "pênis" na esteira do caso John Wayne Bobbitt tem algo a ver com uma mudança na linguagem, senão no paradigma. Seja qual for a razão (Pee-Wee Herman? Arnold? Anita Hill?), a pergunta que Freud nunca formulou porque imaginava que a resposta fosse óbvia agora ecoa alta e insistente: "O que os homens querem?"
Dois livros que colocam essa pergunta, embora de modo um tanto quanto discreto, são "Warrior Dreams: Paramilitary Culture in Post-Vietnam America" (Sonhos Guerreiros: A Cultura Paramilitar nos EUA Pós-Vietnã), de James William Gibson, e "Acting Male: Masculinities in the Films of James Stewart, Jack Nicholson, and Clint Eastwood" (Atuando como Homem: Masculinidades nos Filmes de James Stewart, Jack Nicholson e Clint Eastwood), de Dennis Bingham, refrões sobre masculinidade com tacadas feministas.
"Warrior Dreams" é um olhar fartamente pesquisado, muitas vezes brilhantemente argumentado, sobre os EUA armados e voltados à agressividade. O cerne da tese de Gibson é que no final dos anos 60 uma " 'Nova Guerra' cultural ou imaginária" se desenvolvera em reação ao Vietnã e às batalhas raciais, sexuais e econômicas travadas em casa.
Nos anos 80 essa Nova Guerra —movida por um ideal azedado de poder branco masculino e caubóis na Casa Branca— havia parido uma "cultura altamente energizada da guerra e do guerreiro". Para Gibson, os efeitos negativos eram evidentes em tudo, de Tom Clancy a Rambo, passando pelo aumento das vendas de equipamentos militares e um novo passatempo conhecido como o Jogo Nacional de Sobrevivência —o "paintball".
Gibson examina a cultura da Nova Guerra através de seus artefatos, analisando filmes grandes e filmes baratos, a ficção mais sensacionalista, a revista "Soldier of Fortune", o lobby das armas, a NRA (National Rifle Association), Ronald Reagan, George Bush e o ex- pomba (por ter escapado da convocação ao Vietnã) Bill Clinton.
Semiólogo das oportunidades iguais para homens e mulheres, ele se desloca pelos EUA em alta velocidade, perscrutando sua paisagem com inteligência e fina ironia.
Num capítulo intitulado "As Armas Mágicas do Herói", ele revela o erotismo do metal pesado: "Balas são disparadas contra uma simulação de carne humana, chamada 'gelatina balística'. Revistas sofisticadas publicam gráficos que contrastam a expansão e a penetração dos projéteis, frequentemente acompanhados por desenhos de canais de feridas que se assemelham muito a vaginas".
Quando assisti "Rambo" pela primeira vez, as manifestações de histeria que emanavam dos homens na platéia eram iguais às minhas, uma fusão de incredulidade e prazer. Os filmes de exploração e as risadas com que são saudados são extraordinariamente complexos. O Rambo de Stallone, equipado com uma musculatura totalmente carregada e uma lâmina alongada, é uma caricatura da masculinidade, uma charge.
Gibson não vê muito humor nesse personagem, que quase uma década mais tarde ainda se apresenta tão determinado quanto antes.
Mas mesmo um personagem representado com seriedade pode ser burlesco. Essa é uma visão que um filme tão grosseiro quanto "Rambo" reconhece.
A idéia da masculinidade como farsa é central na análise que Bingham faz dos astros do cinema. Em sua introdução a "Acting Male", Bingham escreve: "Somos objetos que se fazem passar por sujeitos; o gênero e o estrelato transmitem a ilusão de uma transformação semelhante". Bingham toma emprestada a idéia do discurso cinematográfico feminista (que, por sua vez, o tirou da psicanálise), e a transpõe para três dos mais célebres corpos masculinos a ocupar as telas de Hollywood.
Bingham não é o primeiro acadêmico a levar estrelas do cinema a sério, mas é um dos mais interessantes. Ele é um espectador engajado, que segue o "desejo de procurar respostas para pesquisar perguntas, principalmente pelas evidências fornecidas na tela".
A identificação de Bingham como espectador consciente (e fã maldisfarçado) confere a "Acting Male" uma intimidade agradável, e, o que é mais importante, situa sua análise no contexto do intercâmbio historicamente movido, culturalmente dinâmico, também conhecido como "ir ao cinema".
Por mais divertidas que sejam, as visões de Bingham sobre filmes e desempenhos específicos —ele adora Stewart, reabilita Nicholson e, como a maioria dos críticos, é tolerante demais com Eastwood— são menos importantes do que seus três argumentos a favor da masculinidade como farsa.
Sobre Eastwood, ele escreve: "Sua carreira, com todos seus passos em falso, ilustra um 'programa de desintoxicação' de masculinidade em 12 etapas". Isso é superficial, mas também é verdade, tanto em relação ao astro quanto ao momento histórico específico em que ele brilha. Escrevendo sobre "Os Imperdoáveis", Bingham diz que "está claro que 'Clint Eastwood' nunca mais terá o mesmo significado. A máscara foi tirada, e o rosto que existe por baixo dela é o de uma mulher... é a vítima da insegurança masculina disfarçando-se de poder e força. O rosto também é o de um homem, seus olhos abertos pelo reconhecimento de séculos de opressão pelos privilégios dos homens brancos".
Embora tenha bastante razão no que diz respeito ao cinema, não vejo com tanto otimismo quanto ele a possibilidade desta tendência estar se ampliando também para a vida fora das telas.
A retirada do "masculinismo" vem se transformando numa obsessão nacional, que antecede os julgamentos de Anita Hill, William Kennedy Smith e Mike Tyson. Pode parecer que este fato contradiz a Nova Guerra de Gibson, mas o mais provável é que seja um fator determinante em sua criação. Gibson escreve que "a Nova Guerra não afirma quaisquer virtudes senão as guerreiras e a nobreza dos grupos de machos. Fora isso, aquilo no que realmente acredita o guerreiro paramilitar ainda é um enigma".
No entanto, como o próprio Gibson argumenta, a missão do guerreiro paramilitar é tudo menos desconhecida, como bem sabem as feministas e os proponentes do multiculturalismo.
"Warrior Dreams" estremece de ultraje incontido. Esse sentimento apaixonado é benvindo, e sua solenidade é compreensível, especialmente quando se leva em conta o território que ele se propôs a mapear. Racistas paramilitares, assassinos seriais, loucos por armas, Irã-Contras e a Guerra do Golfo constituem provas realmente preocupantes da gravidade da Nova Guerra.
Dito isto, as costas de Rambo, e mais ainda as de Stallone, são pequenas demais para carregar o peso que Gibson coloca sobre elas. "Rambo e todos seus amigos lutam numa ação repleta de morte", ele escreve, "e fazem esse combate parecer o melhor dos mundos. É uma visão verdadeiramente trágica, sombria".
Sim e não. É difícil acreditar que Gibson leve a sério tudo que ele mesmo diz sobre representação. A violência pornográfica da ficção sensacionalista é estranha, ridícula, reveladora, até cômica.
Os assassinatos na ficção sensacionalista "hardcore" são caracteristicamente eróticos, uma mancha de sexo e violência que evoca o calor do ritual sagrado, se não seu efeito restaurador. Gibson vê a Nova Guerra como uma evocação vazia do sagrado, e escreve: "Em nível mais amplo, a cultura paramilitar demonstra a necessidade contínua de mito e ritual, mesmo no coração do mundo secular moderno... no decorrer da maior parte da história humana, as pessoas têm compreendido a si mesmas e seu mundo através dos mitos. Estes não são meras ficções que podem ser substituídas pela razão".
Essa crítica não é equivocada, mas é muito fraca, como confirmam as conclusões pouco inspiradas de Gibson: "Hoje apenas um tipo de cerimônia iniciática masculina é amplamente aceita e praticada nos EUA —o treinamento militar/policial e a prova do combate". Os críticos culturais frequentemente tateiam entre uma fé desesperada no valor absoluto da representação e o desespero em relação à sua insignificância absoluta. Será que Hollywood é responsável pelo "Rambo" enlouquecido que assassina cinco crianças e fere dezenas de outras com uma AK-47? O que dizer do fã de Charles Bronson que assassinou o apresentador judeu de um talk show, Alan Berg, e "por acaso" levava os "Protocolos dos Sábios de Sião" a sério? Será que o "Mein Kampf" de Hitler foi responsável pelo Holocausto? Terá sido a Bíblia?
Parece quase impossível conceitualizar um EUA não-violento. Gibson, por sua parte, acredita que "outras áreas da vida social terão que ser reencantadas" (ele acredita no esporte). Como as drogas são tabu, as possibilidades parecem poucas. Isto é, se você não acredita, como Bingham, no cinema, ou nas possibilidades da arte; nem que a masculinidade tem o hábito de trocar suas máscaras.
Os soldados ensanguentados dos filmes de John Woo, Quentin Tarantino e Carl Franklin, entre outros, constituem evidência de que o corpo masculino é cada vez mais frágil, até mesmo descartável. Enquanto isso, o "drag" está por toda parte, os privilégios são patologia e a vulnerabilidade envolve o corpo masculino como um miasma. Mas tudo isto soa terrivelmente familiar. Se a masculinidade é uma farsa, será que isso significa, necessariamente, que a nova máscara é diferente, melhor ou mais radical do que a velha?
Mais uma vez a masculinidade está sitiada. A feminista em mim pode adorar o fato, mas a mulher que vive no mundo real se mantém decididamente cautelosa.

Tradução de Clara Allain

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