São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Uma grata surpresa

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Nunca fui fã de Carnaval. Neste ano, porém, resolvi curtir o desfile na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Fiquei maravilhado. Confesso-me arrependido de, por falta de tempo, ter perdido tantos belos espetáculos ao longo da minha vida.
Para mim, tudo foi uma grata surpresa. Em primeiro lugar, fiquei impressionado com o alto espírito de patriotismo das escolas de samba. Não há uma que não tenha falado e enaltecido o Brasil, destacando ora a garra do povo, ora o heroísmo dos nossos antepassados, ora a pujança da nossa natureza. Tudo muito bem escrito e narrado com a necessária cadência e correta disciplina para o povo entender e cantar junto. Uma verdadeira festa em homenagem à pátria. Coisa que, antigamente, se via apenas nos desfiles militares.
A segunda surpresa foi constatar o sentido de trabalho duro e zeloso que corre o ano inteiro entre os que se preparam para os 45 minutos de desfile. Com bicheiros ou sem bicheiros, as escolas de samba continuam pondo um enorme empenho para fazer tudo com o máximo de carinho e, com isso, apresentar o que julgam ser o mais belo e o mais autêntico a todos os que ali comparecem.
Finalmente, achei impressionante o contraste entre a seriedade com que se desfila e a superficialidade que se mostra a grande festa. De fato, o espetáculo ao vivo não deixa dúvidas sobre a religiosidade com que se faz o Carnaval da avenida. Mas, as imagens da TV preferem destacar a sensualidade e a suntuosidade da festa escapando-lhes os detalhes indicadores da dedicação e seriedade que estão por trás de cada cena.
Comentando o meu encantamento com um amigo —que, aliás, também é "vidrado" em Carnaval do Sambódromo— ele me emprestou um verdadeiro tratado científico sobre o assunto, escrito por Roberto da Matta, "Carnavais, Malandros e Heróis". Fiquei curioso e passei a folhear suas páginas onde encontrei muitas explicações para minha surpresa. Segundo aquele autor, para os brasileiros, "a rua é o local onde ocorre a dura realidade da vida". Como local público, ela é controlada pelo governo ou pelo destino. Ambas são forças impessoais sobre as quais o nosso poder de administrar é mínimo.
Foi exatamente assim que me senti ao assistir o desfile. A grandeza estava na rua. O comando era dos passistas. O regente de tudo era o mestre-sala. A rainha era a porta-bandeira. A comissão de frente, dona do show. Nós, da platéia, éramos simples espectadores. Meros testemunhos de uma festa montada por gente humilde e para dizer à elite que, pelo menos por alguns dias, o povo comanda o espetáculo da vida e a nós, os observadores, é dada apenas a missão de aplaudir. Que bom se esta regra de humildade e igualdade pudesse ser perpetuada ao longo do ano inteiro. Que bom também se aqueles abnegados do samba pudessem contar com o reconhecimento da sociedade, no fim da festa, quando, ainda escuro, perambulavam pelas ruas à procura de um ônibus incerto que pudesse lhes levar de volta para casa.

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