São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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Pulgas, siris e baratas

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Dom Evaristo Arns acabou falando a mesma coisa que o papa, embora com melhores e maiores detalhes. A Igreja abriu a quaresma com a rotineira campanha pastoral, este ano dedicada aos excluídos.
O cardeal-arcebispo de São Paulo disse mais ou menos o óbvio: o neoliberalismo é uma expressão primitiva do egoísmo humano e da brutalidade econômica.
Acho gozada a conotação de modernidade que os neoliberais se atribuem. Nas sociedades mais primitivas somente os aptos, os capazes, os bem-dotados tinham direito à sobrevivência.
Em alguns períodos do processo civilizatório dos gregos, as crianças doentes e os velhos muito velhos eram levados a um precipício e atirados no abismo. Evidente que o INSS daquele tempo não tinha os problemas de caixa do ministro Stephanes.
Pulando alguns séculos, mas longe da modernidade pretendida pela turma do sociólogo andino, houve a sugestão de Swift (não confundir com o frigorífico homônimo) de se comer as criancinhas pobres, que apesar de pobres são ricas em vitaminas e sais minerais.
Não tenho certeza, mas o corpo humano, por mais desnutrido que seja, por mais esfomeado que esteja, possui teor de proteínas superior ao das carnes brancas e vermelhas, só perdendo —segundo me informaram— para as ostras e para o óleo de fígado de bacalhau.
Apesar de ter apoiado FHC na campanha eleitoral, dom Evaristo lembra aos neoliberais dentro e fora do governo que a modernidade é consequência da justiça social.
Sem ela, recuamos à aristocracia dos mais capazes, ao domínio do "mais" que alguns teóricos, assanhados com a queda do Muro de Berlim, cinicamente chamam de meritocracia.
A seguirmos o nhenhennhém do atual governo, logo voltaremos ao estágio mais elementar da condição animal que seleciona espécies e indivíduos pela lei do mais forte —tal como aconteceu com os dinossauros e ainda deve estar acontecendo com as pulgas, siris e baratas. Que vivem e sobrevivem desde tempos imemoriais de acordo com as leis do mercado.

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