São Paulo, domingo, 5 de março de 1995
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A constante carnavalesca

MUNIZ SODRÉ

Num dos episódios da conhecida série televisiva "Jornada nas Estrelas", Mr. Spock, contemplando o cosmo pela escotilha de sua espaçonave, filosofa: "A única constante em todo o universo é a mentalidade burocrática". Reflexão instigante, que bem pode ser parafraseada a propósito do nosso Carnaval: a principal constante da vida brasileira neste século é o espírito carnavalesco.
Não se exclui a mentalidade burocrática, por certo. Mas o fato é que, a despeito de crises políticas, econômicas ou catástrofes naturais, o Carnaval cumpre todos os anos a sua obrigação calendar. Falhem planos de economia, leis da República, poderes da ciência —não falhará o Carnaval.
Houve tempos em que se vaticinava o fim da festa momesca. Nos anos 70, por exemplo, no auge da euforia modernizante e início da hegemonia televisiva, costumava-se dizer que não tinha mais sentido o Carnaval. Seria um rito anacrônico, incompatível com a nova lógica urbana. No entanto, a "folia" renovou-se tanto nos blocos e ruas do Nordeste como nas escolas de samba do Rio e São Paulo. Nenhuma burocracia estatal ou cultural pôde sufocar a festa.
Já se jogou fora muito argumento antropológico em tentativas de explicação do fenômeno. Nada entretanto tão original quanto a pista deixada por Nietzsche no aforismo 213 de "Humano, Demasiado Humano", ao recordar a alegria do escravo nas Saturnais —a festa suspende provisoriamente os princípios da realidade e de hierarquia social.
A afinidade entre as Saturnais da antiguidade e o Carnaval de nossa época situa-se num ponto ocupado por essa vontade de pôr entre parênteses a hierarquia e a realidade, não por mero impulso de inverter ou transgredir leis e princípios (como repetem "ad nauseam" certas teses de antropologia), mas por desejo de uma outra regra social, não necessariamente uma inversão. Vestir-se de rei ou rainha, travestir-se, usar máscara, dançar nas ruas, desfilar na avenida, cair na mais desenfreada gandaia não são figurações desordenadas de um delírio, mas gestos programados pela aspiração a outra regra do jogo.
Nesse movimento desvela-se algo profundo do espírito popular. Uma outra "regra" não implica aí vontade de mudança revolucionária. Mas "jogo" também não implica tropismo para o frívolo, e sim a irônica percepção de que as regras tão seriamente instituídas pelo sistema dominante não têm fundamento, ou melhor, têm tanto quanto quaisquer outras a serem propostas.
É como se à vontade de poder dos poderosos, as comunidades contrapusessem uma "vontade de arte", expressa no inebriamento da festa. E arte aí deve ser pensada —sempre na trilha nietzscheana— não como forma acabada, mas como manifestação de paixões e exibição de fantasias/imagens, sob o comando de forças pulsionais, para tonificar a comunidade.
Nessa via de pensamento, o Carnaval aparece como um estado estético coletivo, uma arte sem artistas (enquanto "gênios" ou vedetes), em que se potencializam os estímulos à comunicação, ao empenho de embelezamento e à mobilidade dos corpos. A música, a dança, as pequenas alucinações, os gestos excessivos são sinais de uma força coletiva fundamental, onde se mesclam amor e violência. Ou, realocando-se palavras do saudoso cronista Antonio Maria: "O gesto do amor chega a ser bruto, de tão livre, alegre e descuidado".
Ora, poderá alguém objetar, isso tudo perde o sentido com o agigantamento das cidades, com a tutela do Carnaval pelo Estado ou pelas indústrias do espetáculo. Foi mesmo o que se pensou duas décadas atrás.
A verdade, porém, é que o Carnaval agiu como a aristocracia de Lampedusa, em "O Leopardo": mudou para não mudar, foi até capaz de pactos com o mal (que alguns carnavalescos dizem ser mal necessário) para não deixar de ser Carnaval. Aqui, as aparências de mero espetáculo para mídia e turistas (só aparências, porque na realidade há toda uma movimentação comunitária por detrás, o ano inteiro); ali, a explosão vitalista de dançarinos nas ruas, a pulsão desestruturante dos corpos escravizados.
Gostemos ou não, achemos ou não repetitivos e fastidiosos os longos desfiles nas avenidas, o fenômeno guarda a sua força. Semelhante quem sabe à do samba, que manteve uma identidade rítmico-melódica nas mutações. Pode-se pensar no poder sugestivo de uma grande patuscada simbólica, que neste ano de 95 levou à avenida a nossa maior cantora lírica, uma anciã de 92 anos, e arrastou para o samba até mesmo os renitentes hare krishnas.
Há entretanto algo mais do que mera sugestão. Não é à toa que este ano levantam-se no Rio vozes populares (não mais intelectualistas) contra o crescente embonecamento mercantilista dos desfiles das escolas de samba. Gente que entende do recado reclama a desaceleração do andamento rítmico (que troca o samba pelo cooper na avenida), maior ênfase na harmonia e na melodia e menos "call-girls". Enfim, reclama-se maior embelezamento artístico.
Por isso é sedutora a hipótese de uma coletiva vontade de arte, que aponta pela alegria e pela ironia da festa para a irrisão dos poderes enfatuados, arrogantes e no fundo indiferentes ao país real. Devem-se ler como sintomas os minieventos e sinais esparsos do Carnaval. Assim é que a tabuleta carregada este ano por um folião de rua na zona sul do Rio de Janeiro dizia: "Depois da burocracia da República das Alagoas, a república burocrática dos pavões". É o Carnaval dando a palavra a Mr. Spock.

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