São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 1995
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Turistas são 'ladrões' da realidade alheia

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Roubar é uma delícia. Tão bom quanto cobiçar a mulher do próximo, pecar contra a castidade, usar domingos e dias santos do jeito que der na telha.
Isto as Tábuas da Lei de Moisés já sabiam prevenir e Freud, pra variar, explicou 2.000 anos depois: se é bom, deve-se proibir. Se está proibido, é sinal de que deve ser bom. Aí estão os Dez Mandamentos e os Sete Pecados capitais que não me deixam mentir.
Mas se roubar é violento, furtar é até compreensível: quem nunca se pegou cobiçando um bem alheio? A lei do desejo, que regulamenta os prazeres proibidos, seria radical a este respeito: se eu quero, devo ter. Se não tenho, eu tomo. Contra esta lógica, que tornaria impossível todo convívio em sociedade, erguem-se leis, códigos morais e religiosos, ameaçando os que cederem à tentação com todos os tipos de castigo.
Temor à lei
Portanto, furtar é uma delícia da qual nos privamos por temor à lei. O resto são racionalizações "politicamente corretas" nas quais acreditamos por conveniência.
Seria muito desgastante viver o mesmo conflito cada vez que uma roupa caríssima, um CD raro, um livro que o amigo mandou vir da Alemanha, uma carteira esquecida de bobeira em cima da mesa do escritório nos aguçassem outra vez a tentação de tomar o que não nos pertence. A lei resolve o problema: "Isso não se faz". Ponto.
O que não acontece exatamente do mesmo jeito quando a pessoa está em viagem.
Uma viagem, principalmente turística, já é por si só uma espécie de tempo furtado. Furtado ao nosso cotidiano repetitivo. Furtado ao cotidiano dos outros, esses nativos de outros lugares, em que nos imiscuímos como extraterrestres com o único objetivo de espiar o que eles fazem, como vivem, o que comem, que hábitos têm, que músicas cantam, como fazem para dizer bom dia, onde é o banheiro? Viajamos para furtar um tempo divertido ao nosso cotidiano tedioso e para furtar um pedaço do cotidiano alheio. Todo turista é um assaltante da realidade alheia além de ser um fingidor, como os poetas.
Isso faz da viagem turística uma experiência de impunidade imaginária. Em terra estrangeira, onde os costumes são outros, sentimo-nos mais perdoados pelas nossas faltas. "Desculpe, eu não sou daqui". "Sorry, I don't understand". Como nossa ignorância nos desculpabiliza em terra estranha!
Se não aos olhos dos nativos —sabemos de muitos países onde as gafes estrangeiras são muito malrecebidas, sabemos da pretensa superioridade racista com que muitos europeus julgam os turistas do sul do Equador etc.—, mesmo assim nós nos perdoamos muito mais longe de casa.
Sentimo-nos mais leves, mais infantis, muito menos responsáveis, passeando nesses territórios fictícios, outra cidade, outro país.
Em viagens de turismo, a moça tímida acaba arrumando uma aventura sexual extraordinária (pelo menos é como será lembrada depois). A dona de casa comportada toma o seu primeiro porre. O marido entediado vira um amante cheio de imaginação (ao menos na primeira noite). E todos nós nos autorizamos a levar alguma coisa, de graça, pra casa.
Cinzeiro, caneta, toalha, a manta do avião! Um brinco só —não deu tempo de pegar o outro— do mercado das Pulgas. Um telefonema de graça pro Brasil de um orelhão quebrado. Uma pulada de catraca do metrô. Onde eu nada tenho de meu, o mundo é todo meu. Todo turista é um bobo, um fingidor, um pirata, um conquistador.

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