São Paulo, quinta-feira, 9 de março de 1995
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Hotéis simpáticos confundem 'ladrãozinho'

DAVID DREW ZINGG
COLUNISTA DA FOLHA

Às vezes passar a mão em objetos de hotéis se transforma em hábito. Alguns hotéis têm toalhas tão macias e fofas que você mal consegue fechar a mala.
Os conteúdos dos hotéis são magicamente sedutores. Quem resiste a um copo criado especialmente para o drinque Singapore Sling, do hotel Raffles? O Raffles é provavelmente o mais lendário dos grandes hotéis, especialmente para quem acompanhou a história do Raj (governo colonial) inglês.
Posso me imaginar descendo até o bilhar do Raffles para jogar uma partida com Somerset Maugham. Se tivéssemos sorte, quem sabe um caso famoso se repetisse.
No final do século passado, dois militares ingleses jogavam uma partida de sinuca numa tarde preguiçosa. O garoto malaio que cuidava das bolas a muito custo criou coragem para interromper a lânguida partida e dizer:
"Me desculpe por interromper, senhor..."
"Pode falar meu rapaz".
"Temo que possa haver um tigre embaixo da mesa".
(Jogador olhando para a mesa) "Me dê meu rifle, por favor".
Som de um estampido ruidoso.
"Agora voltemos à partida".
Esta anedota atiça a vontade que se tem de passar a mão em alguma pequena lembrança de nossa estadia num desses hotéis.
Hoje em dia, o Raffles vende a seus hóspedes um belo copo para Singapore Sling. Quando você chega em casa, tudo que tem a fazer é jogar fora a atraente embalagem e fazer de conta que furtou o copo.
Gosto de hotéis. Comecei cedo, e quando ainda muito jovem aprendi uma lição antiquada: deve-se levar coisas a um hotel, não trazer coisas dele.
O professor foi meu avô, que chamávamos de Pappa. Tudo que ele fazia era em grande escala. Certa vez, quando minha idade ainda era medida em números de um algarismo só, Pappa levou nossa família à Europa.
A comitiva era integrada por 15 pessoas, incluindo duas empregadas da família e eu. Chegamos ao Ritz de Paris em meio a uma azáfama de antigos baús de madeira Vuitton. Minha avó se encarregou de levar as crianças para almoçar. Pappa havia desaparecido com baús e empregadas.
Nosso sossegado almoço francês chegou ao fim quando Pappa finalmente voltou, enrubescido por sua misteriosa labuta. "Os quartos estão prontos", disse ele.
Quando abrimos as portas tivemos um choque do literalmente déjà vu. Estávamos num hotel, mas ainda estávamos em casa!
Pappa havia tirado todas as cortinas, roupas de cama e toalhas que faziam parte da extravagante decoração padronizada do Ritz. Em lugar deles, estavam os artigos substitutos, trazidos da distante América em nossos baús Vuitton. O resultado era uma reconfortante imagem de casa, longe de casa.
"É bem mais seguro assim", disse Pappa no tom de um homem indignado com os estranhos costumes estrangeiros. "Você sabe que esses franceses não gostam muito de tomar banho".
Desde aquele dia venho fazendo uma estranha confusão mental sobre objetos de propriedade de hotéis que eu gostaria de transformar em propriedade minha.
Existem artigos que possuem forte valor sentimental. Por alguma estranha razão, esses preciosos suvenires são muito menos interessantes se você pode comprá-los do hotel. Perde-se toda a emoção.
Uma das mais gloriosas apropriações que já fiz em minha longa carreira de ladrãozinho de hotéis é uma placa. Eu a encontrei perto do elevador de serviço no anexo do Copacabana Palace.
Deve ter sido composta por Mariazinha Guinle, rainha-mãe da hotelaria. Ela diz, grandiosamente: "É especificamente proibido falar espalhafatosamente nesta área".
Nomes de hotéis enfeitam minha mesa de trabalho. Um cinzeiro com letras vitorianas, original do Copacabana Palace; o mais autorizado livro de coquetéis no mundo, furtado do hotel Savoy, em Londres; e um macinho de fósforos (não considerado como furto de verdade) do hotel Carlyle, de Bobby Short, em Nova York.
Existe outra norma que rege as "adoções" de artigos de propriedade de hotéis. Quanto mais simpático o hotel, mais difícil se torna a decisão, e vice-versa. Só que, evidentemente, algo furtado de um hotel que não agrada ao perpetrador do crime tem pouco valor.
Geralmente é melhor responder com bom humor a descortesias cometidas por parte do hotel.
Certa noite eu retornava a meu hotel em Buenos Aires. Pedi ao sujeito de smoking, que imaginei ser o recepcionista, para me acordar às 7h com uma xícara de café.
O pedido não foi bem-recebido. "Acontece que sou o gerente de banquetes", disse ele com frieza.
"Nesse caso", retruquei sorrindo, "eu gostaria de ser acordado às 7h com café para 350 pessoas".
O que eu realmente adoraria ter viria de um lugar originalmente chamado The Cathay, rebatizado pelos comunistas de The Peace Hotel. Quando esse hotel abriu em Xangai, era o único ao qual o viajante ocidental com discernimento confiaria seu baú.
Meu sonho não é realmente justo, pelas normas dos furtos de hotel. Eu gostaria de subornar um dos operários para que me trouxesse o ventilador de madeira do bar.
Foi debaixo desse ventilador que Noel Coward sentou-se, num calor escaldante, para escrever o esboço de sua comédia romântica "Private Lives". Ele completou o esboço em apenas quatro dias. Isso sim é que é uma proeza!

Tradução de Clara Allain

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