São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 1995 |
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O festival da fome
DAVID LERER Os congressos de salvação dos pobres são ótimos para os ricos fazerem turismo. Na linha dos roteiros gastronômicos e de degustação de vinhos, as boas agências logo estarão lançando o pacote Camada de Ozônio para os amantes do verde ou o safari Fome Africana para milionários com má digestão.Agora mesmo está se realizando na aprazível Copenhague um Woodstock da miséria chamado Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social, ou Cúpula do Homem. Coincidiu com o Dia da Mulher e a coisa pegou fogo. Já na abertura as facas brilharam e se ficou sabendo quem é quem. No começo era o verbo. A direita atacou de "melhorar", verbo conciliador e suspeito, e a esquerda fincou pé no revolucionário "assegurar". A esquerda, como sempre, venceu no papel: ficou "assegurada" a participação das mulheres em todas as esferas da vida. Por aí se vê o tipo de debate. Papel, montanhas de papel, decisões solenes que não serão cumpridas, compromissos que jamais serão honrados. O objetivo da Cúpula do Homem, entre outros, é fixar 1996 como o Ano Internacional para a Erradicação da Pobreza. Modesto, não? Tão modesto quanto a Eco-92, outro delírio coletivo patrocinado pelas pobres Nações Unidas. Esta outrora imponente organização dos tempos da Guerra Fria reduziu-se a "promoter" de festivais sócio-psicodélicos onde todos os sonhos são permitidos. No Rio, em 92, multiplicaram-se as juras de amor à natureza e as promessas fluviais de dinheiro para salvar a Amazônia. Alguém cumpriu? Ninguém, nem nós que não conseguimos sequer conter as queimadas. Estudos e projetos serviram para defender teses e conseguir empregos ou foram para o lixo. Em nome do seu conforto egoísta, o Primeiro Mundo continua tranquilamente a empestar a atmosfera, a um ponto tal que as geleiras da Antártida já começaram a derreter. Ora, se os ricos estão pouco se importando com o amanhã do próprio planeta Terra, por que iriam perder o sono por causa dos mortos de fome? Poderá faltar dinheiro para tudo, menos para uma boa polícia internacional que mantenha os miseráveis à distância. Em escala planetária, é o mesmo comportamento que os motoristas de São Paulo ou Rio têm com os meninos esfarrapados que pedem esmola nos cruzamentos: resmunga-se "hoje já dei" ou "não tenho trocado"; olha-se firme para a frente ou envergonhado para baixo, mas jamais nos olhos da criança; levanta-se o vidro se há medo; em último caso pinga-se uma moeda constrangida com a certeza de que isso não vai resolver, apenas acostumar mal o infeliz. As reações variam, mas o que vem à mente são as mesmas idéias: falta polícia nessa terra, pobres são irresponsáveis e fazem filhos demais, afinal como é que deixaram eles chegar até os jardins? Pois é exatamente assim que os países ricos agem e pensam, e não só. O país rico sempre quer que o pobre vá pedir a outro país rico —igualzinho ao motorista, que torce para que o garoto pare no carro da frente e o sinal abra logo. Ironicamente, as únicas conversas sérias no festival dos pobres são as dos ricos sobre a especulação nos mercados de câmbio e as formas de combatê-la. Eles querem defender a ordem capitalista, e não salvar os que estão fora dela. O máximo que se pode esperar dessa cúpula é um Dia do Pobre, assim como já existe o Dia da Mulher, o Dia do Índio e outros menos votados. Nada mais. Texto Anterior: Constituição versus desconstitucionalização Próximo Texto: Escolas desqualificadas; Pedra Furada; Reforma da Previdência; Câmbio e nhenhenhém; Direito de morrer; Brasil ausente; Casa da Mãe Joana; Crime hediondo Índice |
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