São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1995
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"Vestígios do Dia" anula idéia de felicidade

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para quem foi educado numa época permissiva como a nossa e vive num país regido pelo espírito de Macunaíma, como é o Brasil, o filme "Vestígios do Dia", do diretor James Ivory, não poderia ser mais "estrangeiro". Tudo nele nos remete a uma cultura e a um tempo que, por mais próximos que pareçam nesses dias de globalizações e simultaneidades, nos são completamente alheios.
Mas o interesse do filme não se resume à curiosidade antropológica que eventualmente possa despertar. Apesar de ter sido comercializado como mais uma história de paixão reprimida e frustrada, desta vez vivida às vésperas da Segunda Guerra e entre dois serviçais que representam tipicamente a rigidez do universo anglo-saxão, "Vestígios do Dia" vai além da simples crônica de época sobre uma decepção amorosa.
Adaptado do livro homônimo do escritor inglês de origem japonesa Kazuo Ishiguro, vencedor do Booker Prize de 1989, o filme concentra as atenções sobre a relação sufocante entre o mordomo Stevens (Anthony Hopkins) e a governanta Kenson (Emma Thompson), que comandam uma horda de empregados na mansão de lorde Darlington (James Fox).
Este é um típico representante da velha aristocracia inglesa. Vive no centro do debate político nos anos que antecedem a Segunda Guerra e acaba servindo aos interesses do nazismo, não se sabe ao certo se por fraqueza pessoal ou inépcia histórica.
A grande política, no entanto, aparece no filme de forma apenas alusiva, filtrada pelo mundo doméstico, obsessivo, hierárquico, marcado por toda espécie de renúncias que tem na figura do mordomo seu mais legítimo porta-voz.
Absorto em sua rotina de minúcias, Stevens gasta todo seu tempo e energia para servir seu patrão de forma metódica. Abandona de tal forma qualquer aspiração pessoal que chegamos a achar que estamos diante da idéia platônica da mordomia, para tomar emprestada a feliz expressão forjada por Antonio Callado.
Sua vida parece anular-se entre preocupações corriqueiras sobre a posição de um vaso na sala, a limpeza dos móveis da biblioteca ou a distância ideal a ser preservada entre os talheres e os pratos na mesa de jantar.
Tem-se a impressão que Ivory quer mesmo chamar o espectador para o ridículo que decorre da desproporção entre a seriedade compulsiva com que Stevens se empenha em suas tarefas e a flagrante irrelevância das mesmas.
O ritmo deliberadamente arrastado da trama e o tratamento excessivamente austero que Ivory dá aos personagens só fazem acentuar o absurdo daquele mundo sem janelas que envolve e consome homens que parecem feitos de cera.
Numa leitura sociologizante, a chave de "Vestígios do Dia" talvez esteja na correspondência estreita entre a cegueira doméstica do mordomo e a miopia histórica de seu patrão. Ambos deixam escapar sob o próprio nariz aquilo que seria a chance ou sentido de suas vidas.
Quando, depois de terminada a guerra, Stevens tenta recuperar os fios perdidos daquela "vida que poderia ter sido, mas não foi", sua busca resulta num melancólico fracasso. O encontro entre ele e Kenson não poderia ser mais frio, decepcionante, inconclusivo.
Mas no universo de Ivory até mesmo a decepção é desprovida de sentimento ou eloquência. Não tem nada de trágica, definitiva ou exasperada. Este é um mundo onde não faz nenhum sentido sequer pronunciar a palavra felicidade.

Vídeo: Vestígios do Dia
Diretor: James Ivory
Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson
Produção: EUA, 1993
Distribuição: LK-Tel (tel. 011/ 825-5766)

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