São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1995
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Edmundo reinventa a rebeldia sem causa

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os palmeirenses mais fanáticos podem não ter gostado. Mas acho que a detenção do jogador Edmundo, num hotel do Equador, foi recebida com certa alegria pela opinião pública. Ele tinha agredido um cinegrafista. Já fez misérias em outras ocasiões. Está longe de ser um sujeito simpático e humilde.
A punição tende a ser bem-vinda. Se há uma coisa de que brasileiro gosta, é ver a Justiça funcionar. Nem que seja no Equador.
Mas será que é só isso? Apenas a alegria pela punição de um tipo violento, destemperado?
Desconfio que não. A antipatia com relação a Edmundo também se estende a Romário, por exemplo. Ninguém suporta o Romário. Nelson Piquet sempre foi antipaticíssimo, e Ayrton Senna, se não tivesse morrido, suscitaria iguais reservas na população.
Está em jogo, na verdade, a questão do chamado ídolo nacional. Os ídolos estão ficando antipáticos. Nossos heróis vivem de cara feia.
Foi-se o tempo em que Pelé e Éder Jofre figuravam como heróis bem-comportados, rapazes modestos, símbolos da "simplicidade do homem brasileiro".
A imodéstia tornou-se regra, o estrelismo irrita. No futebol, tudo começou com Maradona. Houve rebeldes e brigões na história esportiva brasileira: Mário Sérgio, Serginho, por exemplo. Mas foi Maradona, no cenário internacional, quem começou a fazer de si mesmo a imagem deu um "superstar", como no rock.
Sócrates, do Corinthians, foi uma tentativa de unir mascaramento com atitudes politicamente corretas. O politicamente correto saiu da moda, e o sistema do estrelismo fez de Maradona, Romário, Edmundo umas espécies de vítimas agressivas, assim como os ídolos do rock que se drogam, que insultam e arrastam multidões.
Acho compreensível a antipatia dessa gente toda. Romário, para andar pela rua, precisa de seis guarda-costas. Edmundo, é claro, dispensa guarda-costas. Mas o problema é o mesmo.
Trata-se de uma agressividade mútua entre o público e o ídolo. O público quer rasgar a camisa de seu herói, e este, odiando a invasão de que é vítima, torna-se um "bad boy", um "revoltado", um violento. Sua imagem de "violento" serve, entretanto, para intensificar a idolatria da massa —que, no próprio afeto, na própria ânsia de querer idolatrá-lo, torna-se mais violenta e quer mais ainda rasgar sua camisa.
Criou-se uma curiosa mistura entre o estereótipo do "rebelde sem causa", dos anos 50, e do "profissional competente", dos anos 80-90. Quanto mais eficaz em campo, mais revoltado fora dele.
O desajustado é ao mesmo tempo o oportunista. O menino-problema é o melhor da classe. O preguiçoso é quem decide o campeonato. O milionário é bandido. O esportista saudável toma cocaína.
Daí que todo mundo passa a odiar os ídolos que tem. Na Copa do Mundo, dependíamos de Romário, apesar da raiva que sentíamos a seu respeito. Ele sabe disso, e dá uma banana ao público que o aplaude.
A antipatia dessa gente, Edmundo em especial, talvez não seja ruim. Voltemos aos tempos de Pelé e de Garrincha.
Na opinião pública, tudo se movia em torno da "humildade" desses heróis. Mesmo na época de Émerson Fittipaldi, oriundo de uma classe mais alta, celebrava-se o fato de que nossos gênios esportivos eram modestos.
E que, portanto, representavam o Brasil. País pacífico e inferior, dócil e talentoso, espontâneo e puro nos seus imprevistos de raça mestiça.
Embalados na prosa de Gilberto Freyre, nas gingas de Ademir da Guia, nas firulas de Gerson, nas cantigas de Jobim, nas graças de Caymmi, fizemos de nós mesmos uma espécie de cocada morena, complacente, açucarada —e cada vez que a classe baixa brilhava internacionalmente, com Pelé por exemplo, tudo vinha a confirmar a sabedoria de nosso sistema de dominação social. Confirmava-se o amor dos dominantes pelos dominados, e vice-versa.
Não é por acaso que o grande choque veio com Gerson, no famoso anúncio dos cigarros "Vila Rica": "Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?" Aquilo desmascarou tudo —de Andreazza aos dealers da semana passada. O idílio de classes terminou ali.
A "lei de Gerson" ficou famosa. A ironia é que não foi Gerson, e sim Pelé, quem a levou às últimas consequências.
O atual ministro, ou sei lá que cargo tem, mas é o Pelé, faz anúncio de apartamentos na Praia Grande, enquanto abrilhanta o governo FHC. Isso é levar vantagem.
Quando Fernando Henrique declarou ter um "pé na cozinha", ou quando andou de jegue nos sertões da nossa pátria, ele estava seguindo o modelo Pelé.
Assim como Pelé é negro, subordinado, simpático e cheio de sucesso, FHC tomou o estigma de esquerdista, intelectual, inconfiável —era um "negro" para os banqueiros— e faz hoje o papel ambíguo de um "sinhozinho" puxando o pito com ACM. Candomblé dolarizado.
Nesse contexto, que é o de uma brasilidade arcaica, feita à força de passes telepáticos na mesa de câmbio, de mandingas via telefone celular, de "inside informations" no pregão da Bolsa de Futuros, como se tudo fosse um conluio entre Tóquio e Feira de Santana, entre acarajé e caviar, entre especulação e salvadores tropicais, entre despachos e comunicados do Banco Central —nesse contexto, de extrema cordialidade, até que vale a pena ver Edmundo e Romário arrebentando o circo.
Só que eles também fazem parte do circo. São os Collor-boys de uma sociedade que ainda se julga brasileira, e tem raiva quando vê que, mais do que nunca, o que vale é o cada um por si.
Erramos
Recebo carta de um leitor, a respeito do artigo sobre Maluf e a proibição de fumar em restaurantes. Eu comentava um adesivo que dizia: "I Love Maluf". Eu estava errado. O adesivo dizia "I Love SP - Voto em Maluf".
Pena que não haja "Erramos" para o voto popular.

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