São Paulo, quarta-feira, 15 de março de 1995
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O segundo Leviatã

RICARDO SEITENFUS

"O peixe não vê o anzol, só vê a isca; o homem não percebe o perigo, só vê o lucro"
Ditado popular

Sonhado por Washington, o mercado liberalizado e sem a presença estatal do Alasca à Patagônia, sofre com a presente crise sua principal derrota. Por ironia, não são os argumentos humanistas e a busca do desenvolvimento equânime que abalarão os alicerces do liberalismo, mas sim elementos inerentes a sua própria natureza.
Há meio século, os países capitalistas uniam-se, em Bretton Woods, vilarejo do New Hampshire (EUA), para reconstruir o devastado mundo do pós-guerra e consolidar no plano econômico a inconteste supremacia política e militar dos Estados Unidos.
O isolacionismo americano, que determinou a retração dos EUA ao fim da Primeira Guerra Mundial, é agora vencido. Assim, sob o manto do discurso liberal e da responsabilidade internacionalista, ascendem os interesses do chamado complexo militar-industrial. O mundo conhecerá então um processo, ainda pouco estudado mas sentido por todos, de concentração econômica e de globalização de interesses.
Monetariamente, o dólar torna-se moeda de reserva, vinculada ao ouro (uma onça de ouro equivale a US$ 35). Portanto a saúde financeira do sistema internacional depende da política de apenas um de seus membros, com riscos para todos.
Surgem o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird ou Banco Mundial), respectivamente encarregados dos empréstimos a prazos curtos e longos. Nenhum deles consegue, na prática, estar à altura do desafio da reconstrução, nem sequer da paridade cambial e do desenvolvimento. Será um projeto nacional, o Plano Marshall (que nega auxílio ao Leste Europeu), e não organismos internacionais, que desempenhará o papel essencial.
A recorrência de déficits públicos, o comércio exterior desequilibrado, os gastos oriundos da corrida armamentista e da Guerra do Vietnã foram maus conselheiros de Washington. Emite-se moeda sem lastro, com sucessivas desvalorizações do dólar. Em 1950, um dólar equivalia a quase 400 ienes; hoje, vale menos de 100.
Em 1971, o presidente Nixon é levado a divorciar o dólar do ouro, instalando um sistema de câmbios flexíveis, portanto sem controle do Estado e sem a necessária confirmação de lastro efetivo.
A globalização dos mercados implica também a de capitais. O crescente papel do capitalismo financeiro foi previsto por Hilferding, em 1910. A Primeira Guerra, o surgimento da URSS, a Segunda Guerra e a Guerra Fria o limitaram. Mas ele finalmente adquiriu, nesta última década, uma quase perfeição.
Com o eficiente sistema de transmissão de decisões e de oportunidades de lucro fácil e rápido, os financistas internacionais fazem circular, 24 horas por dia e seis dias por semana, suas ordens informatizadas. Desde a década de 50, o mundo sofreu várias crises, nas quais a polarização de interesses funcionou como elemento regulador. Com o fim da bipolaridade, entretanto, as vozes daqueles que falam em nome do Estado não mais são ouvidas. Inexiste, hoje, autoridade que possa conter ou frear o sistema.
Sem pátria, sem nome e sem outra responsabilidade a não ser o lucro, os especuladores, não satisfeitos com os benefícios auferidos pela desorganização do sistema, decidiram, nestes últimos meses, escalar um patamar superior e provocar quebras de empresas, desvalorizações de moedas e quedas de governos.
As recentes crises na América Latina —Venezuela, México, Argentina— que já alcançam o Brasil, demonstram os resultados especulativos na periferia do sistema.
No caso do México, ele renuncia à condição de país latino-americano, nítida no momento em que adere ao Nafta. Agora, apresenta como garantia para as dívidas a sua maior riqueza, o petróleo —símbolo de independência e promessa de desenvolvimento.
Isso lembra a época em que os pequenos países caribenhos, quando inadimplentes, tinham seus portos e alfândegas tomados de assalto e ocupados pelos credores. Aqui acaba a soberania do México, um desfecho tão terrível quanto natural na era em que se deixa o mercado livre aprisionar o mundo.
Caso não sejam adotadas medidas coletivas, certamente sua ação espalhar-se-á para o centro, fazendo com que se reviva o 1929. Lembremos que, naquela ocasião, 25% da mão-de-obra norte-americana ficou desempregada. As multidões de miseráveis foram laboratório para fenômenos como o nazismo e o fascismo.
Desejar que a ONU (Organização das Nações Unidas) estabeleça controles é algo implausível. Até a atualidade, a ONU nem sequer conseguiu aprovar um código de ética para as empresas transnacionais. Sendo, por excelência, o foro dos Estados, diante do capital, a ONU padece de incurável impotência decisional.
Já o presidente Fernando Henrique Cardoso defende a criação de mecanismos que venham socorrer os Estados nos momentos de crise, através do FMI e do Banco Mundial. Ora, tais órgãos transformaram-se, pela sua ineficiência, em fiscais do subdesenvolvimento do Terceiro Mundo e arautos do "bom governo liberal".
Portanto, é fundamental a ação concertada dos bancos centrais. Essa posição é defendida pela Europa e pelo Japão, mas encontra no liberalismo norte-americano o seu maior opositor. Clinton deveria reler Keynes, que sempre defendeu uma forte presença do Estado-nação frente aos interesses privados. Em Bretton Woods ele foi derrotado, mas ressurge com a crise atual.
Finda a dicotomia Leste-Oeste, os augúrios de desenvolvimento do Sul dão lugar ao desafio de enfrentar o monstro do capital descontrolado, numa época que exclui em absoluto o efetivo desenvolvimento social, a chaga da América Latina.
Analistas sugerem que a história, por progredir somente por impulsos, potencialize a crise do capitalismo que, ao autodestruir-se, obrigatoriamente deverá ser regenerado. Mas a cegueira com a qual nossos dirigentes, em particular na América Latina, esposam o credo liberal constitui um mau presságio em direção ao aprofundamento da crise social, com imprevisíveis consequências para a democracia.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Genebra (Suíça), é coordenador do curso de mestrado em integração latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor dos livros "Para uma Nova Política Externa Brasileira" e "Haiti, a Soberania dos Ditadores".

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