São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
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'Caro Diário' reinventa tradição italiana

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Filme: Caro Diário
Produção: Itália, 1994
Direção: Nanni Moretti
Elenco: Nanni Moretti, Renato Carpentieri, Jennifer Beals
Onde: a partir de hoje nos cines Belas Artes/sala Oscar Niemeyer e Cinearte

Nanni Moretti traz consigo o esplendor e a decadência do cinema italiano. Do esplendor, seu "Caro Diário" guarda o sentido de observação do real, o humor, o despojamento, e, sobretudo, a enorme crença na imagem como modo de criar conhecimentos.
Esses atributos —cultivados a partir do neo-realismo— foram aos poucos se perdendo ou, pior, se prostituindo. É como se, ao mesmo tempo em que perdiam o gosto de filmar, escapasse aos novos cineastas italianos a capacidade de observação das coisas.
Esse sentimento da decadência (de que escaparam uns poucos) atravessa "Caro Diário" desde a forma confessional. Trata-se de filmar um diário, a experiência vivida de um homem (no caso o próprio cineasta, que também faz o papel principal), seu sentimento das coisas que o cercam, o olhar que lança ao seu redor.
O filme começa com um passeio do homem em sua Vespa, precedido do sublime anúncio: "A coisa de que mais gosto no mundo". Que coisa? Andar de lambreta, ir ao cinema, vasculhar os diversos bairros de Roma?
Todas elas, talvez. Flanar, com certeza. O fato é que o motoqueiro se mostra como um marciano, em seu descompromisso com as coisas que acontecem fora de sua experiência. Ela é que vai constituir a delicada trama, na qual o sentimento pessoal encontra o mundo exterior, nos três momentos do diário ("Eu e Minha Vespa" é o primeiro; seguem-se "Ilhas" e "Médicos").
No primeiro, Moretti se autoriza todas as fantasias, desde discutir com os filmes que vê até cultivar uma obsessão por Jennifer Beals (a bailarina de "Flashdance").
No capítulo seguinte, visita as ilhas Eolie, ao norte da Sicília, anotando suas particularidades: desde o domínio que os filhos únicos exercem em Salina até o estranho encontro entre TV, turismo e paisagem agreste em Stromboli.
No primeiro capítulo, o motoqueiro parecia um marciano, com seu estranho capacete. No segundo, Moretti é um homem à paisana, o "normal" da história. Ele observa os usos e costumes de cada uma das ilhas como o estrangeiro que tateia uma cultura estranha e tenta encontrar o sentido dos gestos, caminhos e paisagens.
Quando chega até os médicos, o tom muda: agora é o cineasta às voltas com uma montanha de diagnósticos disparatados a respeito das coceiras que o atormentam (e se revelam, por fim, um câncer).
É nessa parte que as relações humanas ganham relevo, embora mediadas por relações profissionais: fama, vaidade, certeza, sofrimento, o acerto e o erro são elementos centrais de sua peregrinação a clínicas e consultórios.
Dessas três abordagens do mundo, Moretti tira a visão de um homem errante. Não julga, mostra. Mas é evidente o prazer que tem em fazer sua câmera registrar o que existe de mais óbvio e mais oculto no mundo, que são as relações que uma pessoa entretém com a paisagem e os seres ao seu redor.
Poderia ser muito pouco, é verdade. Mas essa atitude se contrapõe frontalmente ao artificialismo de boa parte do cinema contemporâneo. Não há vontade de agradar em suas imagens, nem mesmo de criticar ou de parecer inteligente.
Basta a elas ser. Como elas são, o que "Caro Diário" (prêmio de melhor direção em Cannes-94) registra é o sutil encontro da imagem com a existência. O que produz é uma poesia que emerge do real, não da vontade de fazer poesia. Tudo muito velho, se se quiser. Mas também muito novo.

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