São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nhenhenhém, tereré

JOSÉ SARNEY

O que enriqueceu o português foi o grande número de palavras que ele incorporou como uma língua de navegantes, de negócios, que viajava nas embarcações que iam, nos séculos 15 e 16, à Terra Nova para pescar, nas carrancas que descobriam a África Ocidental, que passaram dos cabos Bojador e Não, descendo sempre, contornando o cabo da Boa Esperança, subindo pela África Oriental em Moçambique, Sofala, Mombaça, Melinde, indo até Ormuz, e que depois atravessaram o Índico, chegaram a Goa e Coxim, até o estreito de Malaca, Macau e Nagasaki, vendendo e comprando sedas, contas, especiarias, noz-moscada, canela, pimenta, cravo-da-índia, prata, ouro, escravos.
Tomando em nome de Portugal posse de terras e gentes que lhe tinham sido dadas a catequizar pelo papa Calixto 3º, na bula "Intercoetera", na divisão do mundo entre as coroas de Portugal e Espanha, no Tratado de Tordesilhas.
O português foi língua de corte na África, como o francês na Europa; era falado nos "prazos" africanos e nos portos onde se descobria o mundo desconhecido de todos os mares. Levou palavras e trouxe palavras.
Não tendo mais águas por onde ser falado, chegou ao Brasil, desembarcou em terra, e com a mesma vocação foi a língua dos faiscadores, dos bandeirantes, dos mascates, dos emboabas que dominavam os dialetos indígenas, e avançou e só parou no contraforte dos Andes e nas florestas invencíveis da Amazônia.
Nessa peregrinação, chegou ao nhenhenhém, de etimologia tupi (nhê, nhee, ¤e¤e = "falar"), que já estava dicionarizado desde o velho Morais, pai-dos-burros em Portugal e no Brasil, que a considerava como "lengalenga, falatório interminável, resmungo", invocando o testemunho e abono de Franklin Távora, um dos pioneiros do romance nordestino, com a citação de um dos seus livros: "Pára com este nhenhenhém! Há duas horas que te lastimas sem parar". Laudelino o registra, assim como Aulete.
O Aurélio acrescenta outra acepção e registra ainda "rezinga" e a etimologia. O índio colocou no idioma o vocábulo possivelmente guarani tereré, que variou em tererê. Fontes Ibiapina registra o tererê com a mesma acepção do nhenhenhém, na expressão "Tererê não resolve".
Não sei por que essa estranheza com o presidente Fernando Henrique por prestigiar o tupi. O essencial do debate é saber com que significado o presidente o utilizou. Resmungo? Lamúria? Palavrório? Lengalenga? Na realidade, acredito que ele quis ampliar e enriquecer o sentido do nhenhenhém, dando-o como sinônimo de blablabá, para não ser acusado de galicismo ou espanholismo, fontes em que esta expressão existe e nada tem com o tupi.
O Visconde do Rio Branco tem um texto em que critica a sujeira do Rio de Janeiro, no livro "Cartas de um Amigo Ausente", em que ele diz sobre o nhenhenhém que então havia sobre o assunto: "Mais mulas e menos gualdrapa... (chega) de palavras-portarias". Assim, esse basta sobre a conversa fiada é um direito dos homens de Estado, desde Paranhos do Rio Branco até o presidente Fernando Henrique, com a contribuição marcante do tupi à língua portuguesa.
Desculpem pelo nhenhenhém...

Texto Anterior: O preço
Próximo Texto: JUSTIÇA QUE TARDA; CRISE DO PSDB; ARTICULAÇÃO POLÍTICA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.