São Paulo, sexta-feira, 17 de março de 1995
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O preço

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Itamar Franco deve ter razões para se considerar traído. O que ele fez para eleger o atual presidente não foi mole. Engoliu ressentimentos, aparou as arestas explosivas de seu temperamento, entrou até o pescoço no clima que ele próprio ajudou a promover —jogou tudo na cruzada redentora para eleger FHC.
Acredito que não tenha pedido muita coisa em troca, a não ser a tranquilidade de que ficaria a salvo de acusações. É praxe, na história republicana, o sucessor desnudar a administração anterior. Jânio Quadros chegou a abrir uma comissão para apurar a remessa de 500 quilos de feijão feita no governo de JK. O feijão apodrecera nos armazéns do cais do porto e o homem que construiu Brasília ficou sob a suspeição de ter enriquecido à custa de alguns sacos daquilo que Jânio xingou de "robusta leguminosa".
Não deve existir um acordo formal entre Itamar e FHC, mas a promessa de reciprocidade de carinho ficara explícita entre os dois.
Apesar disso, todos os dias surgem abrolhos para Itamar: concessões de rádio e TV no final de seu governo, gastos triplicados na publicidade, comprometida basicamente na campanha eleitoral do candidato oficial, telefones do Zé de Castro fazendo as vezes das alfacinhas dos tempos de Collor, enfim, mesmo que não fosse mineiro, Itamar teria suficientes motivos para suspeitar da missão que FHC reservou para ele em Portugal.
Bem verdade que o grupo agora no poder não arrastará a turma de Juiz de Fora até o Calvário da execração. Radicalizar seria um suicídio, pois o vínculo que ligou os dois bandos é o próprio FHC. Na hora do aperto, das cobranças da sociedade, nada mais natural que o atual governo se desaperte jogando a culpa na administração anterior.
E nada mais natural, também, que Itamar fique aquilo dentro da roupa. Ele assumiu o governo podendo descarregar em Collor 493 anos de erros na vida pública. Gostaria de ser poupado, ou na melhor das piores hipóteses, taticamente esquecido.
Para quem está de fora, a impressão é a de que o pacto de silêncio de ambos os lados tem um preço muito alto, que nem Itamar e nem FHC podem pagar.

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