São Paulo, sábado, 18 de março de 1995
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Coisa fofa

JOSUÉ MACHADO

Coisa fofa
"Agora, meu bem, tem agência de viagens para gays e lésbicas. Tá?"
É claro que o redator se soltou, caprichou no informal e usou o coloquialíssimo "tem", muito corrente na linguagem oral no lugar de "haver" e "existir". Num texto de revista alegre e descontraído como esse, entitulado "Dicas certeiras para a viagem", o correto "haver" despontaria como o Edmundo de casaca na hora de enfrentar o Corinthians: "Agora, meu bem, há agência de viagens..." Sem contar o penoso encontro vocálico de "há agências...". O redator (redatora?) tiraria a casaca do texto corrigido, mantendo a ternura, com o indefinido (no bom sentido) "um" depois de haver: "Agora, meu bem, há uma agência..." Não ficaria mal, e a frase continuaria coloridinha. A não ser que tenha rimado de propósito bem com tem para obter efeito que julgou poético. Não foi feliz.
Mais à frente a coisa fica feia. "Escolha o roteiro e os fofos lhe preparam para a viagem com uma pasta cheia de dicas essenciais (tipo que remédio levar), para não falar de hotéis e lugares gay friendly."
A maioria dos escribas acha dispensável a vírgula antes da conjunção aditiva "e" —antes chamada com toda a inocência de "copulativa". Distração deles. Quando promove a cópula de orações com sujeitos e verbos diferentes, o "e" deve vir precedido da higiênica virguleta, e assim as idéias fluem com graça e clareza.
Todo esse papo virgulal por causa do roteiro que os fofos da agência preparam por encomenda. É só reler a frase:
"Escolha o roteiro e os fofos lhe preparam..."
À primeira leitura, tem-se a impressão de que as pessoas devem escolher o roteiro e os fofos. Isto é, que os fofos estão incluídos no pacote. Como há duas orações ("Escolha o roteiro") e ("os fofos lhe preparam para a viagem..."), a vírgula é essencial para a clareza da leitura e para que os fofos não se ponham à venda com o roteiro, o que talvez não fosse má idéia.
"Escolham o roteiro, vírgula, e os fofos fazem e acontecem." Ou:
"O Banco Central explicou mal a mudança das margens de flutuação cambial, e a especulação comeu solta." Ou:
"Quércia fez uma coisa, e Fleury castigou outra." (A não ser que tenham feito a mesma coisa.) Melhor esquecer a política, ainda que representada por seus melhores quadros, que isso não dá certo.
Menos mal a falta da vírgula, pecado pequeno que os jornalistas desconsideram. Bravo mesmo é o pronome de "...os fofos lhe preparam para a viagem...". "Os fofos lhe preparam para?" Cacilda! Costuma-se preparar algo ou alguma coisa para alguém: os fofos o preparam para, a preparam para...
O verbo preparar, como outros, exige dois complementos, ambicioso que é. Trata-se de um verbo transitivo direto e indireto. Para ficar saciado, exige objeto direto e objeto indireto. Como dar. Dá-se algo a ou para alguém. O jeito que o redator usou o preparar é equivalente a algo como "os fofos lhe deram para você". Não fica bem. Ou os fofos deram algo a alguém ou lhe deram algo. No caso de preparar, também é possível preparar-se para alguma coisa.
Parece óbvio, no entanto, que o redator teve uma dificuldade adicional com "preparar". Não se sentiu à vontade para dizer que os fofos "o preparam" nem "a preparam", talvez porque o público a que se dirigia não é dos mais simples. Ele? Ela? E as nuanças? (Que nos perdoem o galicismo.) Poderia ter utilizado o assexuado e simpático "você", que serve indefinidamente para os rapazes e para as moças de todos os matizes: "... os fofos preparam você para a viagem...". Pronto. Uma solução fofa e sem mágoas pra lá ou pra cá.
Há mais. Os fofos dão dicas "(tipo que remédios levar)". Por que "tipo"? "Eu encontro você tipo 8 horas.", "Eu viajo tipo sábado." Por que não pegam esse gracioso "tipo" e não o põem em qualquer outro lugar? Qualquer. Não fará falta, e os fofos ficarão felizes.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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