São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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A fogueira dos mitos

ROBERTO CAMPOS

O ideal seria abolir os monopólios, para obter exposição máxima da sociedade à competição
"Nada mais difícil de manejar, mais perigoso de conduzir, ou de mais incerto sucesso, do que liderar a introdução de uma nova ordem de coisas. Pois o inovador tem contra si todos os que se beneficiavam das antigas condições e apoio apenas tíbio dos que se beneficiarão com a nova ordem."
(Nicolau Maquiavel, 1459-1527)

O presidente Kennedy costumava dizer que o mito é mais perigoso que a mentira, porque mais insidioso e penetrante. No Brasil, criou-se toda uma mitologia em torno dos monopólios estatais.
Todo monopólio é ruim, a não ser prova em contrário. Os monopólios são um atentado simultâneo à democracia e à eficiência, porque violam dois direitos básicos: o direito de produzir do empresário e o direito de escolher do consumidor. São também a forma menos eficiente e mais irracional de organização econômica. A inexistência de concorrência abafa a criatividade e dificulta a aferição de resultados. O curioso no Brasil é a falta de paralelismo. Há grande repugnância pela cassação dos direitos políticos do cidadão eleitor; e grande tolerância no tocante à cassação dos direitos econômicos do cidadão produtor e consumidor.
Isto posto, é preciso reconhecer que o monopólio é um mal inevitável. Mas quando, "faute de mieux", ele existe, é fundamental que ele seja monopólio do governo e não da empresa. Todos os países civilizados admitem limitações ao desempenho de algumas atividades, qualquer que seja o regime de propriedade sob a qual sejam exercidas. Isso por considerações de interesse público eminente, como a preservação de recursos naturais, a prevenção de efeitos negativos externos contra terceiros (p. ex., poluição, desvio de águas comuns, etc.) ou a preservação da ordem moral e da segurança pública (p. ex., prostituição, drogas, uso indevido de armas e explosivos etc.). Questão correlata é a dos chamados "monopólios naturais". São atividades a ser concentradas em um único produtor ou fornecedor, pela inconveniência e alto custo de duplicar instalações, como, por exemplo, redes de águas e esgotos. Tradicionalmente, eram também considerados monopólios naturais a transmissão da eletricidade e as telecomunicações. Quanto ao petróleo, é atividade competitiva e a existência de monopólios estatais é doença em via de erradicação, pois só sobrevivem em quatro países árabes e dois latino-americanos (sendo o Brasil um caso singular de monopólio em país importador).
Felizmente, a tecnologia se encarregou de reduzir a área dos chamados "monopólios naturais". Nas telecomunicações, essa necessidade desapareceu. Com o surgimento das fibras óticas, de utilização flexível e a baixo custo, e da tecnologia de transmissão por satélites e celulares digitalizados, os monopólios não só se tornaram desnecessários como insustentáveis. Na eletricidade, produtores diversos podem associar-se para uso de uma única linha de transmissão; e nas grandes cidades várias empresas podem operar em diferentes regiões, competindo na qualidade do serviço.
Mesmo nos "monopólios naturais" remanescentes, não é preciso que sejam estatais. É preferível que sejam privados. Os serviços de águas e esgotos, assim como de eletricidade, estão sendo privatizados em vários países do mundo. Ao contrário do que dizem nossos "estatólatras" brasileiros, o monopólio privado é sempre preferível ao monopólio estatal. A razão é simples. O monopólio privado pode ser anulado em qualquer momento, se violados os termos de concessão (os monopólios públicos, ao contrário, tornam-se centros de poder político autônomo). O consumidor pode mover ação de perdas e danos, reclamar muitas e promover a penhora de bens da empresa faltosa. Nada disso é factível em relação aos monopólios estatais, que por isso mesmo se comportam despoticamente em relação ao cidadão.
O ideal naturalmente (quando tecnicamente possível) seria abolir todos os monopólios, para se obter exposição máxima da sociedade aos ventos saneadores de competição. Com três possíveis exceções, duas sugeridas pelo sábio professor Eugênio Gudin e uma pelo deputado Amaral Netto. Gudin sugeriu que se criassem estatais para atividades que o governo deseja restringir e desencorajar, como, por exemplo, o jogo e a prostituição. Criadas a Ludobrás e a Sexobrás, com adequados formulários e exigências burocráticas, estiolar-se-ia o jogo e os fornicadores "broxariam". O deputado Amaral Netto acha que se deveria estatizar a pena de morte, que está hoje privatizada tanto na Baixada Fluminense como na periferia de São Paulo. Uma Carrascobrás viria a calhar, convindo lembrar que o Estado de Nova York acaba de restaurar a pena de morte...
Ao invés desses tipos saudáveis de estatização, o que fizemos foi estatizar os setores produtivos, que deviam ser encorajados pela competição privada e abertura internacional. Do monopólio da Petrossauro, resultou que o Brasil tem 6% da área sedimentar mundial e apenas 0,3% das reservas de petróleo e 0,1% das reservas de gás natural. Do monopólio da Telessauro, resultou que o Brasil tem 12,8 milhões de terminais telefônicos e 11 milhões de demanda reprimida, sendo hoje no mundo o 43º país em densidade de telefones por habitante. Do monopólio da Eletrossauro, resultou termos 19 projetos hidrelétricos parados, cujos canteiros de obra exigem US$ 1 bilhão de dólares anual de simples manutenção.
É tempo de explodir dois mitos que poluem a psique brasileira. O primeiro é que o governo não deve privatizar as grandes estatais, porque elas são rentáveis para o Tesouro. É mentira deslavada! Dados da Sest relativos aos quatro dinossauros (Vale do Rio Doce, Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás), no período 1990-1993, revelam que os dividendos pagos ao Tesouro foram de apenas 1,08% ao ano. Entretanto, se deduzidos os aportes do erário no mesmo período, o fluxo médio foi "negativo" em 6,8%. Isso demonstra que, se tivéssemos seguido a fórmula adotada pela República Tcheca e pela Rússia (na primeira fase de privatização, até julho de 1994) de distribuir gratuitamente, a todos os cidadãos, bônus conversíveis em ações de empresas estatais, teríamos logrado dois propósitos: a) democratizar o capital; e b) economizar gastos para o Tesouro.
O segundo mito é que, privatizando as estatais, corremos o risco de criar monopólios privados. Esse risco pode ser evitado dividindo-se o setor entre duas ou mais empresas. De qualquer modo, como demonstrado acima, o monopólio privado é muito menos perigoso, muito mais vulnerável, muito mais humilde face ao consumidor que o monopólio estatal.
A bagunça dos dinossauros atinge aspectos tragicômicos. A Telessauro —duplamente estelionatária, porque suas operadoras venderam telefones sem entregá-los no prazo contratual e receberam dinheiro de subscrição de ações em 1989 sem até hoje entregar as cautelas— gastou, no ano passado, US$ 49 milhões em propaganda. No último quadriênio (1990-1993), os dividendos pagos ao Tesouro, deduzidos os aportes, representaram um fluxo negativo de US$ 352 milhões! É muito prejuízo para conquistar clientes cativos! E as doações da Petrobrás ao seu fundo de pensão foram equivalentes, nesse quadriênio, a 88% dos seus lucros, ou seja, quase 4,5 vezes os dividendos propostos ao Tesouro, esse menor abandonado. No caso da Petrossauro, não se sabe qual a fronteira entre sua ação industrial e sua função de instituto de previdência privada.
As propostas de FHC ao Congresso são moderadas. Não determinam a privatização de nenhuma estatal, mas permitem que elas sejam expostas à concorrência. Mesmo esse tímido passo suscitará injúria, calúnia e difamação por parte dos neolíticos, especializados no personalismo injurioso. Prepare-se, FHC, relendo Maquiavel que, mais que quatrocentos anos atrás, já previa as dificuldades da modernização!

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