São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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A eutanásia e a legislação penal

DYRCEU AGUIAR DIAS CINTRA JUNIOR

"Tão atroz, e talvez pior, parece-me a morte muito tempo diferida pelas técnicas médicas, essa morte que não acaba. Em nome do juramento de Hipócrates, que coloca acima de tudo o respeito pela vida humana, os médicos criaram a forma mais refinada das torturas modernas: a sobrevida. Isto me parece criminoso"
(Luiz Buñuel, Meu Último Suspiro).

O debate a respeito da eutanásia vem à tona com frequência quando a imprensa noticia casos de médicos que interrompem terapia em situação de morte certa e sofrimento do paciente.
Ressurge o tema, agora, em face da polêmica causada por um tetraplégico que quer autorização judicial para que o ajudem a eliminar a própria vida (cf. Folha, Caderno Cotidiano, 12/03/95).
Trata-se de questão delicada, cuja disciplina jurídica deve ser muito bem pensada e, ao nosso ver, descriminada apenas em casos extremos e no âmbito da atuação do médico.
No Código Penal vigente nenhum tipo penal se refere ao chamado homicídio eutanásico e, em face disto, há dois enquadramentos possíveis. Em primeiro lugar, pode a conduta se amoldar ao conceito de homicídio, havendo quem o considere um homicídio privilegiado, quando se trata de causar a morte por compaixão pelo doente terminal, que sofre e é mantido artificialmente vivo. Deste teor, acórdão publicado na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, 41/346.
Entende-se haver aí o que a lei chama de relevante valor moral (artigo 121, parágrafo 1º, do Código Penal), capaz de reduzir a pena do homicídio —que é de seis a 20 anos de reclusão— de um sexto a um terço, conforme as circunstâncias. Em segundo, caso se trate de resposta manifesta a expresso desejo do doente de se matar, configura-se o auxílio ao suicídio (artigo 122 do Código Penal), ficando o agente sujeito a pena de dois a seis anos de reclusão.
A omissão legal quanto à eutanásia, tem sido criticada e por isto, andaram bem os integrantes da primeira subcomissão de reforma do Código Penal —nomeados pelo governo Itamar, cujas reflexões e trabalhos espera-se tenham continuidade no governo FHC—, ao delinearem, em pré-projeto, divulgado há tempos, duas figuras específicas: a eutanásia ativa e a eutanásia passiva.
A primeira (ativa), se aceita a sugestão dos especialistas no tema, passaria a ser um homicídio privilegiado com pena reduzida de um terço à metade, considerada a motivação piedosa, de menor reprovabilidade, desde que haja pedido da vítima, que sofre de mal irreversível grave e permanente, segundo o atual estágio da medicina, com insuportável sofrimento físico.
Entenderam os integrantes da comissão que a descriminação de tal situação ensejaria a possibilidade de pactos de morte, aos quais não pode ficar indiferente o Direito Penal.
A segunda (passiva), também chamada de ortotanásia, praticada exclusivamente pelo médico, desde que cumpridos determinados requisitos, seria permitida. Configuraria uma causa de exclusão de ilicitude, passando a ser conforme ao direito.
A conduta descrita no texto proposto é a do médico que omite ou interrompe terapia em situação de morte iminente e inevitável de acordo com o conhecimento médico atual, de pessoa que perdeu completamente a consciência ou não chegou a adquiri-la (anencefalia).
Mas, para a legalidade do ato seriam necessários três requisitos: 1) atestado assinado por dois médicos (outros que não o que deva praticar a conduta) a respeito das condições objetivas, enquadráveis no conceito; 2) autorização da família (cônjuge, companheiro, filhos, pais, conforme for o caso); 3) autorização judicial a ser dada em três dias, após os quais, não vindo, fica autorizada a providência.
O conceito, último, que se tenta introduzir com razão, é o moderno a respeito da vida. Seu prolongamento, quando já não é um dado da realidade, mas puro artifício cientificamente obtido, não se justifica (cf. Alberto Silva Franco, A eutanásia passiva no novo Código Penal, em Boletim IBCCrim nº 5, junho/93).
Tanto que a vida assim preservada será meramente vegetativa; não dará jamais à pessoa qualidade de vida compatível com a dignidade humana, suporte constitucional básico de todos os direitos. A sobrevida, nestas condições, como disse Bu¤uel, passa a ser uma tortura.

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