São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Como é possível salvar o Real

LUCIANO COUTINHO

O suporte central do Plano Real —a possibilidade de manter a taxa de câmbio semifixa, numa faixa estreita, por um longo período de tempo— desmoronou. O que restou do plano não passa de um arranjo precário, pendurado em taxas de juros estratosféricas e dependente de uma forte desaceleração da economia para "segurar" temporariamente a inflação.
Este filme já assistimos várias vezes. A fuga de capitais financeiros da América Latina não permite mais conviver com elevados déficits em conta corrente. Poderemos contar somente com a entrada dos investimentos diretos (principalmente das multinacionais) e com os créditos oficiais para financiar um déficit de pequena magnitude (abaixo de 1% do PIB).
Para ajustar as nossas contas externas e evitar grandes perdas de reservas, continua sendo indispensável corrigir a significativa sobrevalorização da taxa de câmbio. A movida recente, na direção correta —infelizmente operacionalizada de maneira desastrada—, não foi suficiente: apenas 7% de desvalorização quando necessitávamos de pelo menos 20%.
Superado o trauma, será necessário proceder uma nova rodada de ajuste da taxa de câmbio. Esta expectativa já está se generalizando, sendo aconselhável: 1) prepará-la com impecável competência; 2) não postergar demasiadamente sua implementação.
Diante do quadro acima, do impacto do ajuste cambial e dos efeitos dos juros elevados sobre os preços faturados a prazo, será ainda possível salvar o Real? Creio que sim mas, para isso, será imprescindível abandonar completamente a sua arquitetura original, redesenhando-o em novas bases —antes que a inflação ascendente dissemine velozmente o vírus da indexação.
Do lado do governo será necessário humildade e sabedoria para procurar decididamente um novo rumo. Do lado da sociedade e das oposições será indispensável, respectivamente, mobilização para defender a estabilização e generosidade para colocar o interesse do país acima dos embates políticos.
A estabilização interessa a todos: à grande população pobre e marginalizada, por continuar livre da brutal expropriação que lhe é imposta pela inflação desenfreada; aos trabalhadores, pela perspectiva de sustentação do crescimento, com geração de empregos e possibilidade de ganhos salariais sustentáveis; aos empresários, pela possibilidade de —finalmente!— iniciar um ciclo de expansão econômica com lucros e novos investimentos.
Ainda senhor de considerável capital político, cabe ao Presidente a iniciativa. Não deve iludir-se com a miragem tecnocrática de que será possível administrar um "fine tunning" do "Plano" nas condições atuais, na base do feijão-com-arroz. No curto prazo não há, evidentemente, alternativa à realização de um esforço de austeridade fiscal e à manutenção dos rígidos controles sobre a moeda e o crédito. Mas, para salvar a estabilização em bases duradouras, é necessário convocar a sociedade e as forças políticas para uma nova agenda de desenvolvimento com estabilidade, cujo conteúdo sugiro a seguir.
1. Adoção transitória e voluntária de uma política de rendas em que se fixariam tetos mensais para reajustes de preços e salários, coibitivos de uma provável tendência de reaceleração da inflação. A implementação desses tetos não seria apenas vigiada pelo governo, mas principalmente pelas entidades organizadas da sociedade civil.
2. Discussão neste foro de novas regras de negociação salarial para o futuro que permitam avanços efetivos na modernização das relações de trabalho, introdução ao contrato coletivo e que evitem todo e qualquer mecanismo sistemático de indexação.
3. O governo colaboraria efetivamente flexibilizando o tratamento tributário (dilatando prazos de recolhimento) para os setores que firmarem compromissos de estabilidade absoluta de preços por prazos definidos e sustentaria a austeridade monetária e fiscal pelo prazo que for necessário à completa negociação da agenda.
4. O desenho de uma verdadeira política de desenvolvimento seria uma parte-chave da agenda, incluindo as infra-estruturas, as políticas agrícola, industrial e de serviços. Aos investimentos produtivos seria dada máxima prioridade, desenhando-se para tal mecanismos adequados de financiamento.
5. A negociação das reformas tributária e previdenciária, com o objetivo de reforçar estruturalmente as finanças públicas e viabilizar o futuro da seguridade social, seria colocada em primeiro plano na área parlamentar, sem prejuízo de sua discussão na "agenda de desenvolvimento com estabilidade". Outros temas de reforma constitucional/legal seriam temporariamente adiados.
Esta parece, a meu ver, a única arquitetura possível para salvar o Real —enquanto há tempo.

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