São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Idílio racial e despotismo em Gilberto Freyre

RICARDO BENZAQUEN DE ARAÚJO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma indagação acerca do papel desempenhado pela figura do negro na obra de Gilberto Freyre provavelmente receberia, até há pouco tempo, uma resposta dupla e rápida. Por um lado, ele seria quase com certeza elogiado por ter se constituído no primeiro intelectual brasileiro a tratar essa figura através da idéia de cultura e não da de raça, o que lhe permitiria recuperar de forma positiva as contribuições de diferentes comunidades de origem africana para a formação da nossa identidade nacional.
Por outro, contudo, não se deixaria de registrar que esse mesmo impulso relativista o teria levado a criar uma imagem singularmente harmônica e integrada da nossa sociedade colonial, ocultando a exploração e o conflito inerentes à escravidão atrás de uma fantasiosa "democracia racial".
Creio que esses dois pontos resumem o que se poderia chamar de "sabedoria convencional" sobre Freyre. Entretanto, embora não pretenda refutá-los inteiramente, tenho a impressão de que já seja possível levantar argumentos que, ao menos no tocante aos livros que ele publicou nos anos 30 —como "Casa Grande & Senzala" (1933)—, talvez possam tornar essa discussão mais complexa e matizada.
O próprio abandono da noção de raça em "Casa Grande & Senzala" está longe de ser uma questão completamente resolvida, pois basta uma leitura superficial do texto para que se perceba que Gilberto Freyre continua a empregá-la. Tal percepção, todavia, não o converte em mero repetidor das posições racistas da época, posições que, sempre encarando o Brasil pelo ângulo da miscigenação, ou o condenavam à mais absoluta decadência ou faziam com que as suas chances de desenvolvimento dependessem da total erradicação da nossa herança negra.
Freyre, ao contrário, irá lidar com a questão de maneira muito diversa: baseando-se em uma suposta aptidão dos seres humanos para se adaptar às condições ambientais, aptidão que importava inclusive na capacidade de incorporar, transmitir e herdar características adquiridas na interação com o meio, ele acaba por trabalhar com uma concepção neolamarckiana de raça, concepção que julgava que aspectos biológicos e culturais dos povos eram profundamente marcados pela relação com o clima e o relevo da sua região de origem.
Teríamos, então, o que se denominava de raças "históricas" ou "artificiais", categorias cuja utilização não implicava necessariamente contradição com o conceito de cultura. Afinal, nada obrigava a que diferenças atmosféricas pudessem fundar uma escala de valores em que alguns povos fossem privilegiados e outros rebaixados ou excluídos.
Abria-se na Colônia, portanto, o palco para uma peculiar e —para Freyre— essencialmente positiva experiência social, onde, bem distante do predomínio de uma única regra ou civilização, diferentes raças e culturas influenciavam-se mutuamente. E, o que é particularmente relevante, sem que cada uma perdesse inteiramente sua identidade, o que aponta para uma totalidade extremamente precária, sincrética e instável, em que a busca do equilíbrio nunca envolve a completa anulação dos antagonismos culturais.
Ora, basta recordarmos a enorme importância que a idéia de região terá no pensamento de Freyre, além da evidente complexidade apresentada tanto por aquela relativa conciliação entre os conceitos de cultura e de raça quanto por essa plástica e heterogênea visão do nosso passado colonial, para que fique suficientemente claro o interesse que o exame desses temas pode despertar.
Não cessam aqui, porém, as possibilidades levantadas por uma revisão daquela "sabedoria convencional" acerca do nosso autor: também no que diz respeito ao caráter idílico e consequentemente mistificador da sua análise da escravidão colonial, podem-se sugerir algumas alternativas no sentido de uma reabertura da discussão.
Ainda que não pairem dúvidas sobre a ênfase conferida por Gilberto à formação de vínculos bastante estreitos entre senhores e escravos, vínculos responsáveis até por uma certa "colonização" do português pelo negro, é indispensável também reconhecer que ele nunca deixa de destacar o ambiente violento e despótico que cercava estes vínculos.
Na verdade, este ambiente é realçado e detalhado a tal ponto, concretizando-se em torturas, estupros, mutilações e —sobretudo— na cotidiana redução da vontade do cativo à do seu mestre, que não podemos deixar de nos perguntar sobre o efetivo significado de uma sociedade assim dividida entre o despotismo e a confraternização, entre a exploração e a intimidade.
Mas é justamente no tratamento de questões deste tipo que aquela imagem de uma totalidade instável e heterogênea, recém-mencionada, parece oferecer a sua mais valiosa contribuição.
Provavelmente estimulada pelo seu diálogo com as correntes modernistas, no país e no exterior, esta acepção não vai deixar de recorrer às idéias de ordem, consistência e solidariedade, mas nunca de forma dogmática, rotineira ou sistemática, mostrando-se, por isto mesmo, particularmente sugestiva para uma experiência tão ambígua e repleta de contrastes quanto a brasileira.

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