São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Um viajante tropicalista pelas terras d'além mar

OMAR RIBEIRO THOMAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Entre 1951 e 1952, Gilberto Freyre realiza uma viagem a Portugal e às suas colônias no continente africano e na Índia. Em cada "província", do Portugal metropolitano ou d'além-mar, profere discursos e conferências, sempre exaltando as características peculiares da colonização lusitana.
Reunidos em livro, seus discursos e conferências vieram a compor a forma mais acabada do que o próprio Freyre denominou "luso-tropicalismo", interpretação totalizante e funcional da presença portuguesa em territórios tropicais que, a partir dos anos 50, tornou-se moeda corrente entre os que legitimavam a continuidade do poder colonial português.
O luso-tropicalismo começa a tomar corpo na obra de Freyre a partir do final dos anos 30. Podemos, no entanto, antever elementos do luso-tropicalismo já em um dos seus grandes clássicos, "Sobrados e Mocambos", quando, ao lado de uma rica descrição das mudanças pelas quais passa a sociedade brasileira em função do processo de urbanização e modernização, ele observa elementos que tendem a repor o universo de relações entre brancos e negros que teria caracterizado o Brasil da casa grande e da senzala. Começa, então, um processo que desembocará na universalização de uma teoria que, inicialmente, teria como alcance restrito o Pernambuco dos primórdios da colonização.
Ao longo da viagem que realiza a "terras portuguesas", Freyre apenas confirma o que previra anteriormente: nas colônias africanas encontra brasis em gestação; em Goa, uma sociedade simbiótica que, como o Brasil, teria promovido o encontro entre raças, religiões e culturas. Em todo o "mundo português" —na Guiné ou em Macau, na Índia ou no Timor— se repetiria o milagre do Brasil: um mundo onde as distâncias não seriam intransponíveis e onde, sempre sob a égide de um cristianismo lírico e se expressando na língua portuguesa —enriquecida com sotaques e vocábulos nativos—, surgiriam sociedades sincréticas portadoras de uma identidade comum.
As relações cordiais entre os colonos e os nativos, entre brancos e negros —que Freyre encontra na sua viagem— seriam a prova de que, em qualquer espaço ou tempo, haveria "constantes portuguesas de caráter e de ação".
Na África do século 20 teríamos, como no Brasil, uma nova criação portuguesa nos trópicos. Podemos imaginar o impacto da fala do já internacionalmente conhecido sociólogo de uma ex-colônia de Portugal. Salazar e seus entusiastas passaram a solicitar nos fóruns internacionais mais 400 anos para que pudessem terminar aquilo a que haviam dado início: a construção de novos brasis.
Embora a singularidade da colonização portuguesa fosse uma noção há muito reivindicada por políticos e intelectuais, seria equivocado afirmar que, antes dos anos 50, haveria um consenso de que na África os portugueses tratavam de repetir o processo observado no Brasil.
Tal noção aparece timidamente na fala de diversos intelectuais portugueses nos congressos coloniais das décadas de 30 e 40, mas predomina a idéia de que nas colônias, sobretudo africanas, relações igualitárias não poderiam ser estabelecidas com as populações nativas, porque estas seriam inferiores. Em todo o caso, as relações poderiam vir a se estabelecer no futuro. Caberia, no entanto, à raça branca, a posição de mando.
As publicações de propaganda que proliferaram nas primeiras décadas do salazarismo veiculavam, sobretudo, imagens dos povos exóticos do Império: na sua diferença residia a glória de Portugal e a legitimidade do Império Colonial. A sua lusitanidade era uma promessa, que apenas o universalismo português podia prever.
A partir dos anos 50, publicações oficiais passaram a reproduzir fotos onde vemos brancos e negros convivendo fraternalmente em escolas, restaurantes e hospitais. O exotismo dos costumes africanos transforma-se em folclore regional que apenas engrandeceria a grei. Tratavam-se, afinal, de autênticos portugueses.
O luso-tropicalismo de Gilberto Freyre procurava, enfim, superar dilemas e contradições que acompanharam a formação dos grandes impérios coloniais. Curioso paradoxo: a intelectualidade brasileira, sempre acossada pelo "mal-estar da cópia", passava a exportar uma teoria e um modelo de relações raciais que viria a alimentar um império agonizante, um regime autoritário e uma guerra cruel.

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