São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Dickens e seu anjo sem pernas

PETER GAY
ESPECIAL PARA O "NYT BOOK REVIEW"

A vida sexual dos vitorianos, durante várias décadas alvo de mofa e piadas de mau gosto, voltou à agenda de críticos e acadêmicos. Feministas dispostas a arregimentar o passado para fins políticos atuais, historiadores da literatura analisando o papel das mulheres na ficção, romancistas brincando com pastiches de autores oitocentistas —todos dão prova desse interesse. E, há pouco mais de uma década, os historiadores juntaram-se à onda —e já não era sem tempo.
Chegou a hora de livrar "vitoriano" de suas conotações infelizes e imerecidas. Todos pensamos saber a que se aplica o termo: maridos burgueses sexualmente frustrados em casa, forçados a gratificar seus desejos com amantes ou em bordéis; esposas tristemente ignorantes (e indiferentes) quanto aos prazeres da vida erótica; a cultura burguesa nadando em pudor e hipocrisia. Já faz tempo demais que tratamos como dogma a condescendência do grupo de Bloomsbury.
Mas recentemente os pesquisadores vêem levantando questões e sugerindo respostas sobre o verdadeiro lugar de Eros na vida dos vitorianos; seus trabalhos deverão levar-nos a drásticas revisões de verdades estabelecidas. Em seu "Eminent Victorians" (1918), Lytton Strachey —talvez o inimigo mais astuto e ativo que os vitorianos já tiveram pela frente— escreveu: "A história da era vitoriana jamais será escrita: já sabemos demais a respeito". Ele estava errado: ainda sabemos pouco sobre aquela era. Escrevi este ensaio num esforço para saber mais.
Agnes Wickfield teve má acolhida desde o momento em que Charles Dickens a inventou para seu "David Copperfield". Ainda em vida do autor, os críticos acusaram-no de não a ter dotado de uma personalidade própria. Ela lhes parecia uma nulidade, um boneco, pouco mais que uma típica virgem de Dickens. Em sua "Vida de Charles Dickens" —três volumes publicados entre 1872 e 1874—, o sempre leal John Forster, o amigo mais íntimo e o melhor informado dentre os apologetas de Dickens, declarou preferir Dora, primeira "amável companheirinha" de David Copperfield, a sua sucessora Agnes, a "esposa angelical", com sua "sabedoria demasiado infalível e bondade altruísta".
Num interessante balanço de 1869 sobre "Os Serviços Morais do Sr. Charles Dickens à Literatura", R. H. Hutton, editor, crítico e teólogo altamente respeitado, comparou Agnes a outras virtuosas heroínas dickensianas, para então bruscamente declará-la uma mulher "insuportável", sempre "insistindo em apontar para cima". Quase século e meio depois de sua primeira publicação em 1849, "David Copperfield" mantém-se como um clássico, mesmo agora que estamos a repensar a natureza das mulheres vitorianas, especialmente de sua sexualidade. Chegou a hora de darmos uma nova olhada ao livro.
O gesto de admoestação de Agnes apontando para cima, que os intérpretes de Dickens têm retomado à exaustão, deve ser o momento mais constrangedor de "David Copperfield", a julgar pela dificuldade de explicá-lo —que dirá de justificá-lo. Dickens certamente o apreciava, já que o usou duas vezes. Jazendo moribunda num quarto, Dora pede para ver sua querida amiga Agnes Wickfield pela última vez, e a sós. Mais tarde saberemos que ela quer "legar" seu marido à única mulher que realmente o merece.
Quando Agnes volta para o lado de David, à espera do pior no andar de baixo, já está tudo acabado, e ela solenemente aponta com a mão para o céu. Um ano mais tarde, quando David Copperfield volta de uma longa viagem de luto e renovação através da Europa, ele lembra sua "irmã" Agnes do gesto que corporifica —para ele, sempre obtuso— a capacidade de "sempre me levar a algo melhor, sempre me dirigir a coisas mais altas".
E não é tudo: na última página do romance, quando David Copperfield, agora um escritor de sucesso, esposo e pai feliz, lança um olhar retrospectivo a sua vida e vê esfumarem-se as antigas faces familiares, apenas uma persiste, "raiando sobre mim como uma luz celestial" —a de Agnes, claro. "Oh, Agnes! Oh minha alma! Que tua face esteja junto a mim quando minha vida chegar ao fim! Que eu possa, agora que tudo se afasta de mim como estas sombras que se esvaem, reencontrar-te a meu lado, apontando para cima!"— com esta apóstrofe termina o romance.
Sendo Agnes quem é, ela parece destinada a sobreviver-lhe. É enorme o fardo que tal adoração faz pesar sobre a pobre mulher —e sobre a indulgência do leitor. Pode-se imaginar o que Jane Austen teria feito desta cena.
Os críticos de Dickens tornaram-se ainda mais severos com Agnes do que os contemporâneos do autor haviam sido. O juízo mordaz de George Orwell é talvez o mais conhecido. Como escreveu em 1939 num ensaio longo e cheio de admiração sobre "Charles Dickens", Agnes é "a mais desagradável de suas heroínas, o perfeito anjo sem pernas do romance vitoriano".
Num estudo de vulto sobre "Dickens e as Mulheres", Michael Slater, especialista inglês em Dickens, não pôde deixar de se referir a ela, mas sempre com desaprovação: "a natureza desastrosamente forçada da apresentação de Agnes permanece como um empecilho, mesmo para os mais ardentes admiradores". Agnes —escreve ele em tom de chacota— "não poderia em parte alguma do livro brincar de esconde-esconde com David —afinal, não é fácil brincar de 'coisa alguma' quando se é forçado a apontar para o alto o tempo todo".
Percebe-se a irritação que o gesto desperta no leitor. Entre os críticos recentes, encontrei apenas dois que a levam realmente a sério: em "A Cidade de Dickens" (1971), Alexandre Welsh, professor de literatura inglesa em Yale, propõe-na como anjo da morte; com aquele seu gesto a esta altura inevitável, ela convida David a morrer e ir para o céu —uma leitura original, ainda que tétrica demais para o meu gosto. E John Carey, crítico bem conhecido por suas reinterpretações perspicazes de romancistas vitorianos, argumenta em "A Efígie Violenta" (1973) que David é tolo demais para entender o que ela está lhe dizendo: "pois Agnes tem instintos perfeitamente normais, e não está apontando para cima, mas sim para os quartos de dormir".
Esta inversão da opinião consensual é intrigante, mas dificilmente sustentável pelo que podemos saber a respeito de Agnes. Mas já podemos nos perguntar: Agnes era de fato um anjo sem pernas? Os fatos sobre sua vida, narrados pelo próprio David Copperfield, convidam a um veredito bem mais nuançado.
A questão que nos interessa é: como ela ficou daquele jeito? Para David, Agnes é um ícone, um superego sobre-humano perpetuamente aconselhando-o a rejeitar o vil e abraçar o nobre. Ele está sempre a chamá-la de anjo, um anjo fraterno que lhe serve de confessor e guardião. Mas tudo isto é problema de David, não dela. Pelo que podemos ver, ela se mostra sempre
(continua)

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