São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Dickens e seu anjo sem pernas

PETER GAY

(continuação)
Neste livro, a vitalidade, a observação e as notáveis intuições de Dickens deixaram sua marca em toda a partwe e merecem ser levadas a sério
É improvável que vitorianos falassem 'orgasmo' em público, mas conheciam e fruíam a experiência e a achavam salutar para homens e mulheres

competente em assuntos domésticos e profissionais, atarefada e eficiente quando cuida da casa de seu pai solitário e, mais tarde, quando dirige uma pequena escola.
Mas ainda sabemos um pouco mais. Desde sua primeira infância, Agnes servira de mão para seu pai viúvo —que a amava "com uma paixão doentia", como ele próprio confessa anos mais tarde. O leitor moderno de David Copperfield, sabedor das estatísticas atuais sobre abuso infantil, não pode deixar de especular a respeito. E, de fato, Agnes foi vítima de abuso, ainda que não sexual.
A paixão de seu pai era ainda mais doentia do que ele poderia imaginar: era uma espécie de sadismo disfarçado de intensa afeição paterna. Como ele faz notar à sua filha, sua mãe morrera logo após o parto, e a mera presença da menina está sempre a reavivar no pai a lembrança da esposa adorada que ele perdera tão precocemente. É bem verdade que Agnes tivera uma aliada em seu ato criminoso: o pai de sua mãe havia partido o coração da filha ao desaprovar seu casamento com Wickfield.
Mas esta é uma distinção demasiado sutil e perfeitamente absurda para uma criancinha repetidamente confrontada a seu crime. Agnes não podia senão entender a afeição de seu pai como a mais severa das reprimendas: ela não a estava acusando pela morte daquele modelo de esposa exemplar, e pelo simples fato de haver nascido?
Lemos nas "Confissões" que, quando o pai de Rousseau propôs-se a falar ao filho sobre sua mãe, que morrera como a de Agnes, o jovem teria dito: "Agora vamos todos chorar". E Wickfield deu a sua filha muitas razões para chorar. Pois como acontece de hábito com as crianças, Agnes havia internalizado a acusação e assumido a responsabilidade pela morte de sua mãe e pela dor de seu pai. Mesmo quando chora, ela o faz com seus botões, às escondidas, a fim de não preocupar o pai.
Sua serenidade exemplar, sua paciência e fortaleza são todos sintomas que se associam a uma extrema passividade na esfera erótica, incluindo seus sentimentos mais que fraternais por David Copperfield.
Tal passividade, é claro, seria julgada apropriada a uma jovem mulher na época e na posição de Agnes. A sociedade respeitável do século 19 gostava de censurar o atrevimento de mulheres que tomavam a iniciativa da corte amorosa; o código prescrevia a David o primeiro movimento nessa direção. Mas esta inatividade deliberada não era uma regra invariável para as mulheres vitorianas, na vida como na ficção —nem mesmo na ficção de Dickens: temos sua Florence Dombey (de "Dombey and Son", romance que precedeu "David Copperfield"), que pede Walter Gay em casamento: "Se me aceitares por toda a vida, Walter" —diz esta irrepreensível heroína dickensiana— "eu te amarei com ternura". Assim, Dickens deve ter conhecido —ou melhor, sentido— que o caráter de Agnes era crivado de inibições.
Não que ela seja incapaz de lutar com seus conflitos pessoais. Pouco antes da declaração final de David a Agnes, ele lhe pergunta se ela está comprometida com alguém e, numa cena brilhantemente montada, Dickens a faz perder o controle. Ela cede e começa a chorar; pede que ele a deixe ir embora; diz que se sente mal e que logo lhe escreverá. Mas justamente em meio a seus esforços por manter inviolável seu segredo, ela dá a entender que David é e sempre foi o homem certo para ela: "Eu te amei" —confessa— "por toda minha vida".
Pois bem, eu amei Agnes Wickfield por toda minha vida. Minha paixão remonta a quase meio século: encontrei-a pela primeira vez em 1936, quando tinha treze anos, e em alemão. Lá estava ela, apontando com a mão para o céu —"mit der Hand gen Himmel deutend".
Crescendo em Berlim, eu fizera amizade com o filho de um banqueiro, um certo dr. Schreiber que, como judeu, fora retirado à força de seu posto de executivo de um banco e vivia em nosso prédio. Era um homem civilizado e generoso, que me emprestou um por um todos os volumes de Dickens em alemão que tinha em sua biblioteca —com todas as ilustrações de Phiz, Cruikshank e outros.
Foi assim que descobri "David Copperfield" e o elegi como meu romance favorito, sendo Agnes minha personagem favorita. Desde então, li várias vezes "David Copperfield" em inglês, mas meus sentimentos por Agnes jamais arrefeceram, apesar de toda a difamação crítica que tive que suportar. Ela continuava tão bonita, tão corajosa, tão discreta, tão amável que George Orwell não pôde tirá-la da minha mente.
O dr. Schreiber foi capturado durante o pogrom de novembro de 1938, e quando o vi outra vez, umas seis semanas depois, ele parecia bastante abatido por sua estadia num campo de concentração, e me disse que ele e sua família emigrariam para Xangai, na época o único lugar no mundo que opunha poucos entraves burocráticos a judeus alemães sem renda garantida. Não sei o que foi feito dos Schreibers, mas ainda que não consiga recordar as feições do pai, por vezes ainda penso nele como o homem que me apresentou Agnes.
Mas uma coisa é amar Agnes Wickfield, e outra, bem diferente, é entendê-la. Fui percebendo com o passar do tempo que sua retidão e sua reserva, longe de serem angelicais, eram defesas contra uma ferida interior sempre renovada. Ser tão boa, quase além das possibilidades humanas corriqueiras, era seu modo de negar a maldade que pensava carregar consigo.
Numa tirada longa e dilacerada, um desabafo pouco comum que ela inflige a David ainda quando são "irmãos" e seu pai está caindo no alcoolismo, ela dizia: "É quase como se eu fosse o inimigo de papai, e não sua filha amorosa". Ela se mostra terrivelmente cônscia dos sacrifícios que ele fez por ela, "e como suas preocupações quanto a mim obscureceram sua vida e debilitaram sua força e energia". Chorando amargamente, ela diz que gostaria de lhe fazer alguma reparação: "Se eu pudesse endireitar as coisas! Se eu pudesse ajudar em sua recuperação, já que fui a causa inocente de sua decadência".
Suas autocríticas quase histéricas sugerem um desfrute inconsciente do monopólio que ela exerce sobre as afeições de seu pai, o que só torna mais pungente sua situação. Meio século antes de Freud, Dickens sabia que os inocentes jamais são inteiramente inocentes, e que os mais inocentes podem se tomar pelos mais culpados. "David Copperfield" está repleto de tais percepções, e o caráter de Agnes é fruto de uma destas.
Neste romance, a vitalidade, o olhar observador e as notáveis intuições de Dickens deixaram sua marca em toda parte, e merecem ser levados a sério. O lugar de "David Copperfield" como texto-chave no cânon de Dickens permanece inconteste.
É bem sabido que em 1869, meia dúzia de novelas e 20 anos depois da primeira publicação seriada do romance, Dickens destacou-o como seu "filho favorito". Desde então, leitores de todos os níveis de formação o têm considerado como sua obra-prima.
"Se peneirarem a literatura universal em prosa" —observou Tolstói— "Dickens vai ficar. Peneirem Dickens, e 'David Copperfield' vai ficar; peneirem 'David Copperfield', e a descrição da tempestade vai ficar." E permanece muito mais do que a cena da tempestade em que Steerforth, o amigo de David, morre bem à sua frente, pois há outras tempestades memoráveis no romance, todas elas interiores, e as mais furiosas envolvendo e habitando Agnes.
O romance em que Agnes pontifica deve algo de sua projeção incomum a razões extraliterárias, que lhe renderam certo interesse gratuito e circunstancial: suas revelações autobiográficas, tanto reais quanto imaginárias.
Mas por mais que o passado de Dickens esteja imbricado na criação de seu "filho favorito", a ênfase em aspectos autobiográficos às custas de seus achados literários e sua perspicácia psicológica acaba por desconsiderar a habilidade de Dickens em transformar fatos nus e fantasias ocultas em prosa imaginativa e retratos ficcionais.
John Forster, melhor informado que qualquer outro sobre os paralelos entre o romance e seu autor, advertiu energicamente contra a identificação completa de David Copperfield com Charles Dickens. O mesmo fazia o próprio autor. "Acho que o construí bem engenhosamente" —escreveu a Forster em julho de 1849, quando a publicação estava em seus primeiros estágios— "e com um entrelaçamento complicado de verdade e ficção."
O envolvimento emocional de Dickens certamente não o impediu de tomar o tipo de distância de que os autores precisam para poder ver sua obra não apenas com paixão, mas também com clareza. Assim como o Fausto de Goethe não era o próprio Goethe, assim o David Copperfield de Dickens não era Charles Dickens.
Assim mesmo, é possível achar em Agnes traços do amor inibido (e, para a lei então vigente na Inglaterra, ilícito) de Dickens: Mary Hogarth, irmã mais jovem de sua esposa, que viveu com a família Dickens até sua morte súbita aos 17 anos e se tornou um objeto de culto que rondou Dickens por muitos anos.
Qualquer que seja a participação de Mary Hogarth na concepção de Agnes Wickfield, o papel desta última em "David Copperfield" é o da criança edípica em desenvolvimento; os outros são pouco mais que satélites a seu redor, espelhando sua situação —ainda que não seu destino.
A situação familiar de Agnes é representativa de quase todas as outras famílias no romance. Ela vive só com seu pai —a mãe está convenientemente fora de jogo—, tal como David com sua mãe amada e Dora com seu pai igualmente amado— e assim por diante ao longo de todo o elenco de personagens. "David Copperfield" é, portanto, um "Bildungsroman" edípico, a maior das histórias dickensianas sobre um jovem que luta por um lugar no mundo e, após haver atravessado os campos minados do error e da cegueira, disciplina seu coração e encontra a vocação e a felicidade.
"Grandes Esperanças" é seu único rival. Como outros adultos, Agnes só tem a ganhar com a superação de suas ligações edípicas e David desenvolve-se ao afrouxar sua ligação com a mãe e demais figuras maternais. Dickens não compôs seu "filho favorito" a partir de livros, mas a partir de si mesmo, e Agnes é a prova esplêndida de sua compreensão do processo de amadurecimento, ainda que ele próprio não tenha jamais comentado este aspecto central da história.
É sem dúvida um alívio descobrir que Agnes era uma neurótica normal como todo o resto da humanidade, e não um zero emocional, uma mera idealização que Dickens concebera a fim de higienizar seus sonhos doentios com as mulheres que desejava e não podia ter. Mas não estou tentando reabilitá-la apenas por razões pessoais, nem simplesmente para reviver um amor de juventude. Uma reconsideração de Agnes pode ter alcance maior e ajudar na revisão salutar da vida interior dos vitorianos, ora em curso.
Vale notar primeiramente que, ao lançar insultos contra Agnes, os vitorianos davam mostras de seu apreço por mulheres —e mulheres respeitáveis— eroticamente ativas. É improvável que usassem o termo "orgasmo" em público ou mesmo em casa. Mas conheciam e fruíam a experiência, e a consideravam salutar para homens como para mulheres.
Seu forte apego à privacidade, sua reticência em discutir paixões sexuais em linguagem direta não era tão-somente sinal de hipocrisia e pudor. Muitos vitorianos construíam um muro em torno a suas vidas íntimas não para sufocar suas paixões, mas para desfrutá-las em uniões legítimas. E entretanto foram incapazes de interpretar Agnes corretamente, um fracasso para o qual Dickens sem dúvida contribuiu ao retratá-la obsessivamente apontando para cima. Mas talvez eles não a tenham compreendido por não terem à mão os instrumentos psicológicos para diagnosticar traumas difíceis de curar.
A conduta de Agnes tem implicações sociais ainda maiores. Ela tinha todas as razões para pensar que um homem capaz de se deixar embriagar por uma criatura tão inconstante e imatura como Dora —imagem especular da mãe de David, tão amada e tão afetiva— ainda não estava pronto para ela. Sua espera até que David finalmente amadureça parece uma boa estratégia.
Nos termos que eu próprio utilizei, Agnes estava certa ao prolongar seu papel de irmã até que David tivesse vivido o bastante para abandonar as manifestações tardias de seu complexo de Édipo. Só então ele estaria pronto para Agnes e vice-versa.
Desta perspectiva, a passividade de Agnes é uma forma de atividade, um modo de fazer a escolha mais importante de sua vida. E esta leitura de Agnes encaixa-se bem no que estamos descobrindo em nossa caça a cartas pessoais, diários secretos e textos médicos esquecidos daquele período. Como muitas outras mulheres da era vitoriana, Agnes não era escrava dos ditados de um mundo masculino. Ela tomou parte ativa em seu destino —uma razão a mais para amá-la.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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