São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Abalos do grande impacto

CLARK R. CHAPMAN
DA "NEW SCIENTIST"

A violenta colisão dos 19 fragmentos do cometa Shoemaker-Levy 9 com Júpiter, em julho passado, foi o grande drama celestial do século.
Desde então os astrônomos vêm abrindo caminho em meio a montanhas de dados, procurando reconstruir os detalhes da colisão.
As previsões foram cautelosas. Como os fragmentos iriam chocar-se com o outro lado de Júpiter, temia-se que os impactos não seriam visíveis desde a Terra.
As colisões ocorreram exatamente no momento previsto, mas havia mais para ver do que os astrônomos haviam esperado.
Os danos não foram sutis —mesmo astrônomos amadores usando os telescópios mais simples puderam ver os resultados.
Agora, pouco mais de sete meses depois, a sonda espacial Galileu, única a ter uma visão direta dos impactos, já transmitiu de volta à Terra a maior parte de seus preciosos dados gravados em fita.
A primeira surpresa para os astrônomos foi o quanto viram, apesar de o cometa haver colidido com o lado escuro de Júpiter. Na realidade o local do impacto não poderia haver sido melhor, para os observadores em Terra.
Para começo de conversa, os fragmentos A, E, G e W criaram nuvens com o formato de casquinhas de sorvete que se projetaram contra o céu negro acima do horizonte de Júpiter.
Estas visões laterais dos perfis das nuvens possibilitaram uma compreensão muito melhor da física de sua erupção do que teria sido possível se se olhasse diretamente para elas, de cima para baixo.
O ângulo de visão também significou que os observadores em Terra e os instrumentos da Galileu puderam medir as mudanças de brilho associadas às partes quentes e luminosas da colisão.
Teria sido muito difícil medir o brilho das fases luminosas contra um fundo iluminado pelo sol.
Felizmente ainda, os fragmentos caíram logo atrás da beirada da "manhã", que estava na sombra, em lugar da beirada "anoitecer", que estava iluminada.
Júpiter gira rapidamente —cada dia seu dura menos de dez horas—, de modo que levou apenas 10 minutos para os pontos de impacto girarem até ficarem visíveis. O Sol nasceu enquanto os destroços da última nuvem reingressavam na estratosfera de Júpiter, criando enormes "hematomas".
"Flash" meteórico
O Galileu examinou Júpiter a cada cinco segundos durante o impacto G. Às 7h33, o espectrômetro ultravioleta (UVS) detectou um "flash" de cerca de 20% do brilho de Júpiter, que durou apenas alguns segundos e terminou.
O radiômetro fotopolarimétrico (PPR) também registrou o modesto início de um acontecimento às 7h33, que então foi aumentando de luminosidade e durou mais de meio minuto.
A comparação entre os dados UVS e PPR mostra que a radiação detectada veio de uma fonte de apenas sete quilômetros de largura, numa temperatura de 8.000 K.
Esta foi quase certamente a fase "bólido" do impacto, em que o fragmento brilhou como um meteoro brilhante quando passou pela atmosfera de Júpiter.
O espectrômetro de mapeamento próximo do infravermelho (NIMS — near infrared mapping spectrometer) no Galileu não consegue detectar fenômenos extremamente quentes, mas é afinado para detectar calor em temperaturas entre centenas e alguns milhares de Kelvin, medindo vários comprimentos de ondas longos no chamado infravermelho normal.
O NIMS não detectou nada às 7h33, mas 5 segundos mais tarde detectou um sinal em elevação que cresceu e decaiu num intervalo de cerca de um minuto e meio.
Os espectros NIMS mostraram que cinco segundos após o impacto, a fonte luminosa já havia perdido calor, chegando a 6.000 K (temperatura da superfície do Sol).
Durante o minuto e meio seguinte, o NIMS mediu a fonte expandindo-se até atingir 75 quilômetros de tamanho, à medida que ascendia ao topo, por volta da parte superior da atmosfera de Júpiter, e resfriou-se até 450 K apenas.
Em outras palavras, tratava-se da fase "bola de fogo", na qual um volume imenso da atmosfera de Júpiter se expandiu e foi expelido para formar a nuvem.
Alguns meses antes da colisão, Kevin Zahnle, do Centro Ames de Pesquisas da Nasa em Moffett Field, Califórnia, e Mordecai Mac Low, da Universidade de Chicago, previram a ocorrência de um lapso de 20 segundos entre o desaparecimento dos fragmentos incandescentes sob as nuvens (a fase bólido) e a nova ascensão das bolas de fogo, voltando a serem vistas.
Mark Boslough e David Crawford, da Sandia National Laboratories, em Albuquerque, utilizaram simulações numéricas para prever que a parte superior do bólido incandescente iria explodir imediatamente e ela mesma formaria a parte superior da bola de fogo.
Boslough e Crawford estavam certos —não houve intervalo entre a fase bólido e a bola de fogo subsequente. Parece, portanto, que a atividade foi maior na atmosfera; o que aconteceu mais abaixo foi muito mais difícil de se ver.
Uma foto do Hubble mostra um brilho intenso acima da beirada ensombrecida de Júpiter, bem abaixo do nível onde poderia estar iluminado pelo Sol.
Se o horário de impacto registrado pelo Galileu —7h33— estiver correto, a bola de fogo teria ricocheteado para cima numa velocidade inacreditável de 40 km por segundo para atingir a linha de visão do Hubble antes da hora.
Esses indícios de acontecimentos precursores talvez significassem que o fragmento G era na realidade uma coleção de fragmentos menores do cometa.
Durante os oito minutos seguintes, a nuvem G ficou 100 vezes mais brilhante, vista desde a Austrália, devido à expansão detectada pelo Hubble e os detritos incandescentes que começavam a cair de volta sobre Júpiter.
No seu auge, a nuvem se elevava 3.200 km acima das nuvens de Júpiter.
Pouco depois Peter McGregor, no telescópio da Universidade Nacional Australiana em Siding Springs, tirou a foto mais memorável da semana.
Parece uma "explosão" brilhante, de aparência estelar, na beirada de um Júpiter ligeiramente visível, mas na realidade é a nuvem iluminada pelo sol em sua extensão máxima e a zona brilhante causada pela queda da nuvem sobre Júpiter. Durante as horas seguintes, o impacto perdeu calor gradativamente.
Enquanto isso, J. Watanabe e outros astrônomos do Observatório Astrofísico de Wakayama, no Japão, reportaram que um nova mancha escura, maior que a famosa Grande Mancha Vermelha de Júpiter e mais de duas vezes o tamanho da Terra, atravessava o planeta num movimento rotativo.
Na vez seguinte que o local G ficou visível, devido à rotação do planeta, observadores franceses detectaram pela primeira vez em Júpiter a assinatura de emissão espectroscópica de monóxido de carbono quente.
Isso talvez explique um dos maiores enigmas surgidos após a colisão —o que aconteceu à água?
Os cometas contêm grande quantidade de água, sob a forma de gelo. Antes da colisão, todos previam que os fragmentos iriam penetrar debaixo das nuvens de hidrosulfito em Júpiter até regiões ricas em água, de onde a bola de fogo levaria a água para cima, até a estratosfera visível.
Assim, a questão não era se a água seria observada, mas que par te dela viria do cometa e que parte do próprio Júpiter. Os informes iniciais de que ninguém detectou a presença de água levaram a especulações, principalmente na imprensa, de que o Shoemaker-Levy 9 fosse na realidade um asteróide, não um cometa —um exercício inútil de nomenclatura, pois acredita-se que o interior de muitos asteróides seja tão congelado quanto o dos cometas.
Assinatura espectral
Numa circular publicada pela União Astronômica Internacional, Gordon Bjoraker, do Goddard Spaceflight Center (Centro Goddard de Vôos Espaciais) da Nasa, em Maryland, reportou que o Observatório Kuiper Airborne havia conseguido um breve sinal da assinatura espectral de água quente nos impactos G e K antes da temperatura diminuir e as assinaturas (mas não necessariamente a própria água) desaparecerem.
A água é altamente reativa, e pode ter sido consumida rapidamente. Uma possibilidade é que o oxigênio da água tenha sido convertido em monóxido de carbono, conforme detectado nos fragmentos G e K.
Ainda não se sabe se a água veio do cometa ou de Júpiter. Outro enigma é que, à primeira vista, a aparência de todos os impactos foi notavelmente semelhante, apesar dos diferentes tamanhos dos diversos fragmentos.
Uma das questões mais controvertidas, antes da colisão do cometa, dizia respeito aos tamanhos dos fragmentos do cometa.
Se tivessem três ou quatro quilômetros de largura, o cometa original teria o tamanho do enorme projétil que atingiu a Terra há 65 milhões de anos, possivelmente extinguindo os dinossauros.
Mas, se sua largura era de apenas algumas centenas de metros, a situação é mais preocupante.
Nesse caso, danos como aquele causados a Júpiter poderiam ser provocados pelos cometas menores que atingem Terra com frequência muito maior —a cada milhão de anos, mais o menos.
Energia invisível
Talvez nunca seja calculada a massa dos fragmentos partir dos fenômenos do bólido e da nuvem.
Afinal, a energia luminosa total medida pelo Galileu foi menor de 0,1% da energia total que um fragmento sólido de um quilômetro de largura teria liberado, no momento do seu impacto com Júpiter.
Como ninguém imagina que toda esta confusão foi criada por fragmentos com tamanho inferior a 100 metros, a maior parte da energia deve haver sido liberada invisivelmente. Talvez todos o fragmentos tenha tido um efeito semelhante sobre a atmosfera superior de Júpiter quando passaram rapidamente por ela, enquanto a diferenças profundas eram mascaradas no interior gasoso do planeta, ocultas a nossos olhos.
As tentativas de compreender o efeito do cometa sobre a química da atmosfera de Júpiter ainda não renderam resultados claros.
Geralmente os astrônomos se esforçam para detectar assinaturas espectrais fracas, mas desta vez receberam um acúmulo enorme de informações.
Alguns contaminantes estratosféricos obviamente derivaram do cometa, enquanto outros estavam presentes em tanta abundância que devem haver saído das profundezas atmosféricas de Júpiter.
Por exemplo, é inconcebível que um único fragmento G possa ter trazido os 100 milhões de toneladas de enxofre molecular (S2) —sem falar no enxofre contido nos CS2 e H2S detectados— medidos várias horas após o impacto.
Antes do S-L 9, ninguém havia visto enxofre sob qualquer forma na atmosfera de Júpiter, embora se acreditasse há muito tempo na existência de uma camada de nuvens de hidrosulfito de amônia abaixo das de amoníaco visíveis.
As manchas negras resultantes, algumas com mais de 20 mil quilômetros de largura, transmitiram a todos os observadores em Terra um aviso assustador do que um cometa ou asteróide pequeno seria capaz de fazer com a atmosfera de nosso próprio planeta.

Tradução de Clara Allain

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