São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Sangria e torniquete

Não é por acaso que a medicina oferece tantas metáforas à economia. No Brasil, a vida econômica é tão claramente patológica que a política econômica se confunde com a cura ou a terapia. Discutir um modelo é quase sempre associado a prescrever uma receita.
O Plano Real foi uma dessas receitas de efeitos instantâneos e euforizantes. Mas desde dezembro a economia mundial, especialmente a latino-americana, foi tomada de uma espécie de epidemia diante da qual os capitais procuram isolar-se, fugindo rumo a praças supostamente mais seguras.
Há duas semanas eclodiu no Brasil uma crise que nos colocou irremediavelmente num grupo de risco, por mais insistente que fosse a retórica até então defendida pelas autoridades econômicas segundo a qual "o Brasil é diferente".
O que tem ocorrido desde a mudança no câmbio não poderia encontrar melhor metáfora médica que a sangria. Chegou em alguns momentos ao estatuto ainda mais preocupante da sangria desatada.
O nosso Banco Central, entre solavancos e sustos, ganhou o "round" vendendo dólares, subindo juros e ameaçando especuladores. Medidas todas que, é imperioso reconhecer, não têm como prolongar-se indefinidamente.
O governo veio então complementar seu contra-ataque especulativo com mais propostas de estímulo às exportações e contenção de importações, como as quotas ou mesmo a elevação de tarifas externas, em acordo com a Argentina.
Felizmente o governo mostra ter percebido a gravidade da situação. Infelizmente as medidas, se não são tímidas, talvez sejam insuficientes face à urgência de reverter o quadro de fluxos cambiais financeiros negativos e de pressão ainda compradora de dólar. Em nada ajuda a inquietante demora do governo em divulgar o saldo do comércio exterior em fevereiro.
O risco maior é o de se desatar novo ciclo de profecias auto-realizáveis. O importador, assustado com anúncios vagos de medidas protecionistas e com a hipótese de desvalorização maior do câmbio, corre a antecipar suas compras. O investidor, escaldado com a experiência mexicana em que também se pretendeu operar com engenhosidade uma transição entre bandas cambiais, assustado com o custo político, em reservas e juros da debandada de duas semanas atrás, corre também a remeter dividendos, zerar posições em Bolsas ou liquidar obrigações em dólar.
O resultado é óbvio e tornou-se realidade na semana passada. Os fluxos cambiais continuaram com saldo negativo e voltou o sentimento de que será necessário agir mais, mais rápido e de modo mais duro para mudar o sinal da conjuntura. É como se os efeitos do forte analgésico ministrado pelo Banco Central estivessem começando a passar.
A medicina também tem remédios antigos, amargos e até violentos. Numa emergência, a sangria desatada pode ser detida com um torniquete. Fechar a economia, através de tarifas, cotas, estímulo à captação de recursos em dólares e restrições à saída de capitais parece hoje tão inevitável quanto um torniquete, mas igualmente perigoso.
O mundo inteiro debate-se atualmente numa instabilidade cambial e financeira de natureza eminentemente especulativa. É preciso se proteger diante dessas turbulências: proteger as reservas, a estrutura produtiva e as finanças públicas.
O protecionismo emergencial, entretanto, não pode asfixiar o processo mais profundo, de longa duração, de integração competitiva à economia global. A integração produtiva, comercial e financeira é necessária e irreversível.
É urgente deter a hemorragia enquanto se providencia os instrumentos e se ganha o tempo necessários para o ajuste a um ambiente mais hostil. Mas o torniquete também se usa como forma de tortura e, no limite, produz a gangrena. Resta saber se temos, em número e competência suficientes, bons médicos de plantão.

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