São Paulo, domingo, 19 de março de 1995
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Onde está o Ministério Público?

FÁBIO KONDER COMPARATO

Em reportagem publicada nesta Folha em 16 de março último, o jornalista João Batista Natali chamou a atenção sobre o festival de gastos oficiais com publicidade, envolvendo pelo menos sete Estados da Federação.
Em São Paulo, as despesas publicitárias do governo mais do que dobraram, entre 1993 e 1994, saltando de US$ 10,3 milhões para US$ 23,8 milhões. No Estado do Rio de Janeiro o aumento, no mesmo período, foi de 3,6 vezes e no Estado de Minas, de 3,5 vezes. Por mera coincidência, tivemos em 1994 a maior concentração eleitoral dos últimos 50 anos.
Se isso sucede com as administrações centrais, no nível das empresas estatais as orgias publicitárias não ficam atrás. O Banespa (Banco do Estado de São Paulo), que está tecnicamente falido, tem sido há vários anos o maior anunciante oficial do país, fora da esfera federal: no ano passado despendeu US$ 43,6 milhões em publicidade.
Por outro lado, a Cesp (Companhia Energética de São Paulo), que exerce um monopólio público e, portanto, não precisa conquistar a clientela, ainda encontrou meios de gastar quase US$ 7 milhões em 1994, para marcar sua presença num mercado cativo. Tudo isso, como é óbvio, sem licitação pública.
Não é difícil, a partir dessas cifras, fazer o habitual exercício de cálculo sobre quantas habitações populares, salas de aula ou leitos de hospital poderiam ser construídos ou instalados, nos respectivos Estados da União. Limito-me, apenas, a lembrar o mandamento constitucional de que "a publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos" (art. 37, parágrafo 1º).
Disposições análogas se encontram nas Constituições estaduais (por exemplo, art. 115, parágrafo 1º da Constituição paulista e art. 17 da Constituição mineira).
Diante disso, creio que não podemos fugir das seguintes alternativas. Primeira hipótese: o Poder Executivo transformou-se na maior organização educativa, informativa e de orientação social do país, o que sem dúvida dispensa o ministro Bresser Pereira de contratar com estrangeiros a reengenharia do Estado brasileiro e nos permite vender know-how administrativo no exterior. Segunda hipótese: deparamo-nos com o mais bem-sucedido crime continuado de assalto aos cofres públicos de todos os tempos.
Imaginemos que, por deplorável infelicidade, a segunda hipótese seja verdadeira. Pergunta-se: existem meios de punir os meliantes e defender o que pertence ao povo?
Um conhecimento meramente teórico de nossas instituições político-administrativas nos levaria a dizer que há órgãos de defesa da coisa pública com funções específicas nessa área; por exemplo, os tribunais de contas. Mas a pesquisa de algum julgado desses tribunais, considerando irregulares as contas de governantes que celebraram contratos de publicidade sem atender às exigências constitucionais, teria provavelmente um resultado negativo.
Poderíamos também lembrar que desde junho de 1992 vige a lei federal nº 8.429, dispondo sobre sanções dos atos de improbidade administrativa, praticados por qualquer espécie de agente público, inclusive os chefes de Executivo.
É verdade que, por amarga ironia, essa lei foi promulgada por um presidente despedido do cargo por falta de decoro. Mas, admitindo-se que as leis não são contaminadas pela imoralidade de seu promulgador, temos que o mencionado diploma legal considera como atos de improbidade administrativa "ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento" (art. 10, IX), como também "praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência" (art. 11, I).
As sanções vão do ressarcimento integral do dano aos cofres públicos à suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, sem prejuízo das penas criminais.
Tudo bem. Mas quem promove a aplicação dessa lei? Para a apuração de qualquer ilícito nela previsto, é preciso que o Ministério Público, de ofício, a requerimento de autoridade administrativa ou mediante representação de qualquer pessoa, requisite a instauração de inquérito policial ou proponha diretamente as ações judiciais competentes.
Perfeito. Mas onde está o Ministério Público? Por que razão esse órgão é tão discreto que o povo nem toma conhecimento de sua existência? Já houve caso de algum governador ou ex-governador processado por improbidade administrativa na gestão da publicidade oficial?
Quero soltar as velas da indignação, mas sinto despertada nas profundezas da memória a advertência de minha querida professora primária contra as curiosidades malsãs.

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