São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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Rádio de Interlagos vira disque-lanche

Salgadinho salva repórter-fiscal

RODRIGO BERTOLOTTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem pensa que o assunto principal do sistema de rádio de Interlagos é a Fórmula 1 está enganado.
O tema mais empolgante tratado pelos fiscais de pista nos treinos classificatórios foi o lanche que não veio.
Isolados do mundo, abandonados no local mais perigoso do autódromo (o fim da reta oposta), sem poder voltar porque uma bandeira vermelha os proibia, sonhávamos com um pão com queijo e um copo de água mineral gelada.
Tanto sacrifício, tanta renúncia para estar ali, de prontidão para sermos acionados, para cortar carenagens, empurrar carros emperrados na caixa de brita e lançar cargas de extintores.
E o único consolo é o salgadinho trazido de casa.
O pacote sabor queijo repousa escondido no balde do produto químico que serve para absorver óleo, usado para tirar o fluido deixado na pista por algum carro quebrado.
A fome parece aumentar conforme o treino vai pegando fogo e o ruído dos carros de F-1 fica mais intenso no final de reta, trocando três marchas seguidas para fazer a curva para pegar a descida do lago.
O estrondo das marchas, o estouro dos freios, o estampido das pisadas no acelerador parecem fazer efeito imediato e direto sobre nossos estômagos.
O clima de piquenique é quase completo: borboletas, gafanhotos, poças d'água, copos de plástico, guardanapos, garrafas de refrigerante e papel de bala no gramado.
Mas a atmosfera é carregada de saudosismo.
"O ano passado passava o carro com sanduíche na hora marcada. Hoje, nem pedindo por rádio conseguimos que tragam um lanchinho", reclama um dos fiscais do posto 3, situado na curva do S do Senna.
"Edinho, cadê o lanche?", diz o faminto funcionário pelo walkie-talkie. "Prossiga", responde uma voz saída do rádio.
"O carro do lanche não passou, Edinho", replica. "Prossiga", repete a voz, frustrando o sistema digestivo do incauto empregado.
A decadência do serviço de lanche é resultado da ausência do piloto Ayrton Senna, segundo os próprios fiscais.
A dieta rígida desses abnegados senhores —grupo do qual agora faço parte— acontece justamente agora que o Instituto Ayrton Senna, capitaneado por sua irmã Viviane, tenta criar um programa de nutrição para crianças pobres.
Uma pausa no treino causada pela batida de Michael Schumacher, sexta, foi motivo de descanso. Afinal, aconteceu em outro setor e fiscais distantes estão encarregados.
Os fiscais são em sua maioria voluntários que o ano inteiro auxiliam até na organização de corrida de Fuscas para conquistar a fama de experientes e pensarem em uma candidatura para a função no GP do Brasil.
Eles geralmente fazem parte de clubes automobilísticos.
Até que chega a hora da categoria máxima dos esportes sobre quatro rodas.
No domingo anterior à prova, ensaiaram e simularam todas as possíveis ocorrências da prova que se aproximava.
São distribuídas as funções e distribuídos os bonés, os crachás e as capas para chuva.
O posicionamentos na pista também é determinado.
Anteontem e ontem, ficaram das 6h30 até as 14h testemunhando todas as voltas dos treinos classificatórios.
Tudo isso para hoje, dia do Grande Prêmio, realizar o sonho de sentir-se um miserável de beira de estrada.

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