São Paulo, domingo, 26 de março de 1995
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A imaginação do desastre

MODESTO CARONE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando mergulhamos em nós mesmos não descobrimos uma personalidade autônoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado.
Theodor Adorno
Tudo indica que Henry James (1843-1916) já se estabeleceu como escritor no Brasil. A melhor prova disso é a publicação do "Retrato de uma Senhora" ( The Portrait of a Lady), romance de 1882 que alguns consideram com exagero sua obra-prima.
Mas, muito antes que se alcançasse este ponto, James era alvo da atenção de editores e tradutores brasileiros. Nesse contexto, faz sentido lembrar que nos anos 40 Vinicius de Moraes traduziu para uma antologia de contos norte-americanos "Quatro Encontros" ( Four Meetings), um texto importante da primeira das três fases que os especialistas distinguem na obra jamesiana entre os anos de 1870 e a primeira década deste século.
A história da mestre-escola Caroline Spencer, da cidadezinha de North Verona, espoliada nas suas parcas posses e no seu sonho de visitar a Europa por um casal de impostores (um primo "pintor" radicado em Paris e a "condessa" francesa que lhe faz companhia), já era uma boa mostra de como o realismo social do século 19 se aplicava com higiene vitoriana a uma marca registrada do ficcionista —o "tema internacional", conflito ou confronto de personagens americanos com a cultura européia.
Mais tarde, o público também conheceu pelo menos duas versões da famosa novela "A Volta do Parafuso" ( The Turn of the Screw), recebendo recentemente os romances "Pelos Olhos de Maisie" ( What Maisie Knew), "Os Europeus" ( The Europeans) e "A Herdeira" ( Washington Square) —os dois últimos quase simultaneamente a este "Retrato de uma Senhora".
Faz algum tempo, além disso, que estão ou deveriam estar à disposição do leitor peças curtas da ficção de James que hoje integram o seu repertório permanente —como, entre outros, "Os Papéis de Aspern" ( The Aspern Papers), "A Fera na Selva" ( The Beast in the Jungle), "Daisy Miller" ( Daisy Miller - A Study), "A Lição do Mestre" ( The Lesson of the Master), "O Desenho no Tapete" ( The Figure in the Carpet), "Brooksmith" e "A Bela Esquina" ( The Jolly Corner).
A qualidade dessas traduções mantém-se num nível acima da média, merecendo realce ainda maior as de Maria Luiza Penna Moreira ("Os Papéis de Aspern", Global), Paulo Henriques Britto ("A Morte do Leão", e "Pelos Olhos de Maisie", Companhia das Letras), Onédia Célia Pereira de Queiroz ("Daisy Miller e Incidente Internacional", Imago) e José Paulo Paes ("Até o Último Fantasma", Companhia das Letras).
Somado ao projeto de José Geraldo Couto de preparar outros livros do romancista para a Companhia das Letras, o conjunto destes trabalhos demonstra que existe no país uma equipe de jamesianos competentes: não é pouco para nós, principalmente quando vem à lembrança que na Edição de Nova York (1907-1909) e fora dela figuram 21 romances e 112 narrativas curtas e que o grande homem de letras dos States tem um parentesco artístico notório com Machado de Assis.
O "Retrato de uma Senhora" foi concebido quando James já era o autor consagrado de "Daisy Miller", o relato exemplar sobre a jovem cândida, semiculta e autêntica de Schnectady, que se vê às voltas com o traquejo social malsão dos seus compatriotas europeizados de Roma e morre de malária contraída nas ruínas do Coliseu. A sorte de Isabel Archer, a orgulhosa jovem de Albany agraciada com uma fortuna para ser uma mulher independente e dona do seu destino, no "Retrato", é semelhante à de Daisy: vítima da exploração arquitetada por uma dupla razoavelmente sinistra de amantes americanos enraizados na Itália, Gilbert Osmond e Serena Merle —êmulos de Valmont e da marquesa de Merteuil—, a heroína do romance, ao final da narrativa, regressa, derrotada pela consciência de ter sido traída e usada, ao palácio Roccanera ("rocha negra"), que Osmond, o marido, comprou com o dinheiro dela na Cidade Eterna.
Um passo à frente nesse bate-fundo de entrechos ferozes, a desventura de Isabel reaparece agravada em "As Asas da Pomba" ( The Wings of the Dove): Milly Theale, a figura central, é fabulosamente rica e portadora de uma doença fatal, tornando-se portanto a meta privilegiada dos arranjos e trapaças afetivas de um casal inglês jovem e sem dinheiro.
É possível adivinhar o que acontece: estimulado pela namorada, o rapaz irá se envolver com Milly para se casar com ela; uma vez que a morte da "pomba" é garantida, a herança será fruída por ele e sua parceira, da qual aliás ficou noivo em segredo.
Milly morre, deixa uma fábula para o herói, mas ele se vê compelido a renunciar ao legado para ficar em paz com o que lhe resta de consciência ao lado da fiel cúmplice e companheira, com a qual, a partir daí, deixa de constituir uma unidade. "Eu tenho a imaginação do desastre", afirmou James, alma irmã de Machado; não há motivos para duvidar disso.
Mas, vistas as coisas pelo ângulo da composição, na qual o escritor é páreo para qualquer campeão do século passado e precursor dos maiores deste, como Proust e Joyce, o que se põe em prática aqui e em outros lugares da obra —sem exclusão das "nouvelles", que talvez sejam o prato forte da sua produção— é o encaixe do romanesco com o teatro, sua paixão frustrada, mas cuja experiência concreta lhe abriu a possibilidade de desenvolver um novo estilo de narrar.
Em outras palavras, parece que James assumiu em cada fase do seu percurso (50 anos de atividade literária) a viabilidade artística do melodrama, tradição que segundo os entendidos chegou até ele pela via americana de Poe e Hawthorne. (Seu ensaio "Hawthorne" é imediatamente anterior ao "Retrato de uma Senhora"). O que o ficcionista então fez, com uma maestria inconfundível, foi articular o romance concebido à la Flaubert, como obra-de-arte rigorosa, com as regras e as proezas melodramáticas.
No caso do "Retrato", esse tipo de fatura estética se objetiva, em linhas gerais, na relação essencialmente dramática travada entre as personagens no ambiente estrito da convenção narrativa. Assim, é a falta de crítica de Isabel Archer diante da rapinagem escolada de madame Merle (em francês "melro", pássaro preto) e do caráter lacunoso de Osmond —ao lado de quem ela vive, pois é sua mulher— que torna plausível o desembaraço dos vilões... Tudo isso, é claro, trabalhado no registro das necessidades internas de um livro exigentíssimo e sem ferir a armação psicológica matizada da protagonista.
É preciso lembrar, por outro lado, que a obra ainda não conhece a técnica do ponto-de-vista restrito e da supressão, nem o expediente do narrador não-confiável —fundamental, por exemplo, em "A Volta do Parafuso", "Os Papéis de Aspern" e "Brooksmith"—, através do qual o leitor pode ser levado à verdade em função exatamente das distorções operadas no centro de orientação da narrativa.
Dito isso, o romance soa mais de uma vez pomposo, marcado por um vinco maneirista que, se fosse um pouco mais fundo, poderia chatear ou produzir uma quebra no seu propósito crítico. Não falta quem veja nesse trejeito, que adquire um valor arquitetônico na fase final de James, uma imitação do estilo solene do período, embora com toda certeza o leitor possa não entender que está acompanhando a partitura de um canto paralelo, se é que ele de fato existe. Mas é possível supor também que o autor esteja concedendo a um aparato social imponente um prestígio que ultrapassa sua relevância. Como diz um estudioso, o escritor dá a impressão, no fim do "Retrato", de ter ficado sem remorso em relação às "figuras do mal" do enredo, tratando o caráter "raro, superior e proeminente" de uma alcoviteira como madame Merle de forma ambígua —de tal modo que o leitor ouve do fundo de muitas páginas uma discreta exortação para contemplar seres humanos como dispendiosos objetos de arte.
O fausto por sinal atraía James, se não pessoalmente (apesar de "A Bela Esquina" refletir alguma nostalgia empresarial mal-elaborada), pelo menos no plano da ficção. Tanto é assim que as protagonistas do "Retrato de uma Senhora", das "Asas da Pomba" e da "Copa Dourada" (The Golden Bowl) —três dos seus carros-chefes— são uma mais milionária que a outra. É verdade que para todas elas a fortuna vira uma desgraça, uma vez que as confina no círculo social onde se plantam os endinheirados e os vorazes; mas a idéia que fica é que esse espaço social acaba sendo aliciante demais para o autor.
Mesmo não tendo presente que o leitor talvez não admire tanto assim o capital acumulado, o fato é que os seus personagens mais dignos de atenção, como Isabel e Ralph Touchett no "Retrato", estão enredados na abundância material que se transforma em insígnia da alta civilização, ou melhor: em fetiche dela. Como fundo e forma insistem em caminhar juntos na realidade e na arte, o resultado é que até uma mulher de belos sentimentos e opiniões próprias como Isabel se apega —porque é uma dama— a um casamento perverso em nome das "tradicionais decências e santidades" da instituição. Em outras palavras o que venceu a parada foi o princípio (vitoriano?) de sobrepor a respeitabilidade burguesa ao impulso pessoal, por mais generoso que este seja.
Mas não é descabido perceber no âmago da renúncia essencial de Isabel Archer um padrão que dá o tom ao realismo "fin-de-siècle" de James: o mundo subjetivo em que pessoas como ela se movem é verdadeiro e perturbado como a realidade fora dele. O escritor certamente se inspirou nesse desenho para "traçar a implicação das coisas" acionando o que ele próprio chama de experiência.
"A experiência —diz James em "A Arte da Ficção"— nunca é limitada nem completa; é uma imensa sensibilidade, uma espécie de teia de aranha gigantesca feita dos mais finos fios de seda suspensos na câmara da consciência, que captura no seu tecido toda partícula transportada pelo ar".
Faz diferença ler Henry James e o seu clássico "Retrato de uma Senhora".

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