São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 1995
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CD de opereta apresenta Sumi Jo, revelação coreano do canto lírico

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No universo ritualizado da música de concerto, nenhuma figura é mais fascinante e mais enigmática do que uma mulher cantando —exceto uma mulher louca cantando, que é a outra levada às últimas consequências.
A cantora insana é uma figura recorrente na ópera; e talvez uma mulher cantando sugira sempre alguma coisa de loucura.
Toda ária é um abandono do espírito, um espaço paralelo que se abre por alguns instantes, na escuta.
Expressividade e incompreensão se combinam numa melodia, da mesma maneira como, em nossa cultura, a mulher parece projetar significados ambíguos, ou incompatíveis. Salvo engano, a palavra "música" é do gênero feminino em todas as línguas do mundo.
Não há loucas memoráveis na opereta: mas o repertório inteiro parece, muitas vezes, mais próximo do teatro do absurdo do que de Mozart ou Verdi.
A opereta é a própria efígie musical e dramática do Segundo Império. Com sua mistura de corrupção e decoro, de ceticismo e sentimentalidade, de criação e de paródia, a opereta teria tudo para ser a forma preferida do teatro musical hoje.
Mas a grande ópera parece responder melhor às nossas ambições. Externamente, estamos mais próximos do público da opereta, mas não saberíamos o que fazer com a euforia dos grandes finais de Offenbach ou Strauss. A opereta se transformou numa espécie de museu da felicidade antiga.
Neste mundo sem muito prestígio das árias francesas de coloratura surge agora uma deusa da frivolidade.
Apresentada pelo maestro Richard Bonynge —marido e principal responsável pela carreira da grande soprano Joan Sutherland— a coreana Sumi Jo é uma das maiores, senão a maior revelação do canto lírico desde Cecilia Bartoli.
No CD "Carnaval" ela interpreta árias de Offenbach, Massenet, Délibes e Adam, entre outros. São sevilhanas, sonhos de amor, boleros, carnavais de Veneza, lembranças da infância e valsas.
São outras tantas cascatas de notas, "roulades", si bemóis agudos e glissandos, tudo isso para tornar maravilhosamente ininteligíveis as palavras de um francês sem sentido. É uma linguagem da lua, articulada com a triunfante autoconfiança de uma mulher que canta.
Afinação
No total, são treze lições de afinação absoluta, que chegam ao seu ápice na grande ária de Messager, "Le jour sous le soleil béni".
É difícil responder criticamente a essa sucessão de versos sobre as cigarras, "irmãs", cuja sorte comum é cantar e aquecer os corações". Mas, na partitura de Messager, essas cigarras e bosques vão se colorindo de um timbre particular, que para nós, agora, é o timbre da voz de Sumi Jo e que corresponde, melhor do que qualquer outro, ao ideal de alucinação calma que resume um amor de opereta.
Ninguém pode levar a sério as histórias de freiras relutantes, de nobres fantasiados de camponeses ou da "pérola do Brasil", que fornecem o argumento dos libretos. Ninguém pode levar a sério o pastiche explícito de tantas dessas canções.
E não são muitos os que aguentariam escutar essas treze árias, uma após a outra, até o fim. Mas ouvidas isoladamente, caídas do céu no meio de um dia qualquer, essas árias fantásticas são como uma imagem animada da música, tirando férias de Beethoven.
Essa mulher impassivelmente sedutora é um espírito estranho, e cujo segredo se confunde com o próprio segredo da voz.
"Que espírito é este?", pergunta o poeta Wallace Stevens, falando por todos nós. "Porque nós sabemos/ Que é o espírito o que estávamos procurando, e sabemos/ Que deveríamos repetir a pergunta, a cada vez que esta mulher cantar."

Disco: Carnaval!
Intérprete: Sumi Jo, soprano
Orquesta: English Chamber Orchestra
Regente: Richard Bonynge
Gravadora: CD Decca/Londron

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