São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 1995
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A essência do Carnaval

FLORESTAN FERNANDES

O embrião mágico-religioso do último quartel do século 19 continua presente no Carnaval de hoje, embora com menor poder determinante. As escolas de samba formam uma comunidade, com baixa institucionalização. Nos cordões e em outras manifestações carnavalescas, apesar das aparências mundanas, o núcleo permanente dos atores envolve um estado de comunhão. Tomando-se o Rio de Janeiro como referência, constata-se que o fator lúdico cresce em tensão com o elemento mágico-religioso, o único que explica o estilo de participação e de vivência ardente do Carnaval. O engolfamento capitalista, por sua vez, aumenta constantemente as adaptações que atingem o espetáculo, conferindo maior importância às atividades lúdicas e aos seus componentes de exaltação e alegria.
Não só os "protetores" e o público de massa estão relativamente mais empenhados nisso. A frequência ascendente de adesões de não-filiados amplia o corpo de representação das escolas e das suas funções lúdicas seculares nos desfiles. Por aí cresce a constante tendência a permitir e incentivar o lado propriamente boêmio do Carnaval, durante os espetáculos —especialmente no recurso ao nu "artístico", no conteúdo das letras dos sambas-enredo, marchas e na liberdade de utilização ou invenção dos carros alegóricos.
A criação do sambódromo por Darcy Ribeiro, hoje demasiado pequeno, concentrou a exibição das escolas. Tornou maior o número de participantes exóticos, movidos por interesses pessoais ou pela ampla interferência de emissoras sem escrúpulos (como a Globo). O vigor da resistência, até agora, tem impedido, porém, a degeneração ou a eliminação de componentes tradicionais originários.
O grande momento passou a ser a aparição das escolas, com a explosão emocional arrasadora das pessoas incluídas nos cortejos e no público, quando a exaltação atinge seu clímax. As emoções fervem com o início dos desfiles e um estado de êxtase é provocado pela música e pela beleza incrível do desempenho dos passistas e dos multicoloridos milhares de participantes. Nisso, o Carnaval brasileiro ganhou renome internacional, atraindo a gula e a curiosidade dos estrangeiros.
Se esta maneira de encarar o assunto for aceita, ficará mais fácil compreender a combinação oculta do elemento mágico-religioso com a explícita relevância do elemento lúdico. Não estamos diante de uma "coisa de negros, vadios e exibicionistas". Mas de uma rara invenção complexa do gênero humano.
Nosso Carnaval desmente, assim, o pessimismo de autores como Paulo Prado e outros, que só enxergaram a tristeza intrínseca às três raças formadoras. E aniquila o preconceito contra o talento do negro, do mulato e de tudo que tenha raízes na empolgação popular. Afirma-se como uma esfera da cultura, que deveria receber maior apoio do governo. Encerrarei na próxima coluna esta série de reflexões sobre o Carnaval brasileiro.

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