São Paulo, segunda-feira, 27 de março de 1995
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O atraso da vanguarda

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO — Poucas vezes fiquei tão apavorado diante de um aparelho de TV. Não, não tenho clássicos do horror entre meus vídeos, tampouco a programação normal os exibiu. Se houvesse um concurso para escolher quem melhor imitaria Fernando Collor de Mello em seus últimos estertores no poder, outro Fernando, esse balbuciando seus primeiros vagidos no governo, teria ido para o trono.
Desculpa-se a veemência presidencial. Ele viveu duas semanas de baixíssimo astral e nada de mais que tenha desabafado suas aflições para uma platéia de camponeses cearenses interessados em ganhar alguns palmos de terra, antes daqueles sete a que terão direito depois de mortos —isso se as reformas na Constituição não cassarem esse direito em nome da modernidade neoliberal.
Além da veemência, que não combinou com a cordialidade que é um dos seus incontestáveis encantos, o presidente distribuiu com generosa munificência algumas carapuças ideológicas. Referiu-se ele a uma "direita carcomida", a uma "falsa esquerda" e a uma "vanguarda do atraso".
Por definição, por mérito e antiguidade, toda direita é carcomida. A expressão foi largamente usada em 1789 na França, em 1917 na Rússia e em 1930 no Brasil. Falsa esquerda talvez seja novidade, sobretudo quando é diagnosticada por um ex-esquerdista que deve saber das coisas. Reveladora mesmo foi a carapuça mais caprichada, aquela que o presidente destinou à vanguarda do atraso.
Que isso deve existir, deve. Tanto quanto o atraso da vanguarda. Fica-se naquele vago território do chove não molha ou, para usarmos a expressão que o próprio presidente lançou, fica-se num nhenhenhém que, entre outras qualidades, está servindo para definir o governo.
Em criança, uma das esparrelas em que caí foi quando me perguntaram se eu preferia ser focinho de porco ou rabo de leão. Não me deram uma terceira via. Sem muita convicção, acho que preferi ser focinho de porco —nada contra o leão e seu rabo. Bem, eu ia concluir alguma coisa mas o espaço acabou.

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