São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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'O Plano Real já acabou', afirma Cardoso de Mello

ANDRÉ FONTENELLE
DE PARIS

O Plano Real já acabou. Apoiado na entrada de capital especulativo estrangeiro, como no México e na Argentina, ele não pode sobreviver.
A avaliação é do economista João Manuel Cardoso de Mello, 52, adversário do pensamento neoliberal que domina o debate econômico na América Latina.
Ex-membro da equipe do Plano Cruzado, economista da campanha presidencial de Orestes Quércia, Cardoso de Mello esteve em Paris na semana passada para dar palestras e observar de fora a crise latino-americana, o que apenas reforçou seu diagnóstico.

Folha - Que avaliação o sr. faz do Plano Real?
João Manuel Cardoso de Mello - Primeira observação importante: existe grande preocupação em relação a essa nuvem de capital especulativo de US$ 13 trilhões e à desordem financeira que isso representa no mundo.
A quebra do banco Barings foi um prenúncio de que é preciso tomar providências para regulamentar a livre movimentação de capitais no mundo. São capitais especulativos muito alavancados -ou seja, em todos esses mercados, você tem dez, empresta 40 e compra cem. Esse negócio anda de um lado para o outro e causa instabilidade nas taxas de câmbio. Isto é uma coisa importante de ver, porque o Brasil está ligado a isso.
Por quê? Segundo ponto importante: todos os programas, tipo México, Argentina e Brasil, supõem déficits muito grandes da balança comercial e em conta corrente, financiados com esses capitais especulativos.
Folha - Mas o Brasil diz que não está na situação do México.
Cardoso de Mello - Isso é bobagem. Está aqui (mostra manchete da Folha de 23 de março, "Déficit comercial é o maior da história"). O fundamento desses planos de estabilização neoliberais é o seguinte: você fixa a taxa de câmbio, ancora a moeda no dólar -a taxa de câmbio se sobrevaloriza-, rebaixa tarifas, abole controles de importação de toda ordem e tem uma enxurrada de importações. Ela causa um déficit comercial brutal.
Como você financia isso? Bota a taxa de juros lá em cima, ativa a Bolsa com privatizações, especulação... Um pedaço dessa nuvem especulativa pousa e te financia. É a lógica tanto do plano mexicano, quanto do plano argentino, quanto do Plano Real.
Não há diferença em relação à concepção básica dos três planos: combater a inflação ancorando a moeda no dólar e através de uma enxurrada de importações, financiando isso com capital especulativo. Isto é que acabou.
A crise do México significa isso: acabou o financiamento de megadéficits de balança de pagamentos com os capitais especulativos: ponto final. A leitura européia da crise mexicana é essa.
No México, aconteceu exatamente isso. A Argentina está em uma situação periclitante -à beira da quebra, essa é a verdade. Hoje, a grande discussão na Argentina é saber se vai quebrar antes da eleição ou depois.
Folha - O que isso significa para o Brasil?
Cardoso de Mello - Que o Plano Real acabou.
Folha - O governo diz que não.
Cardoso de Mello - O governo pode dizer o que quiser. O Plano Real, na verdade, foi montado nesse pressuposto. Rebaixamento total de tarifas, uma brutal sobrevalorização do câmbio. Com o erro de fixar o dólar a R$ 0,83, o que não era preciso fazer, você acumulou uma sobrevalorização do câmbio da ordem de 30%. Resultado: a acumulação de déficits comerciais enormes.
Folha - O sr. concorda com a elevação das alíquotas sobre importações?
Cardoso de Mello - Está certo. O problema é que, na medida em que você não pode ter importações em massa, o setor privado tende a aumentar os preços internos. É isso que as pessoas não entendem. Por que, nos últimos tempos, a indústria automobilística segurou, mais ou menos, os preços? As medidas de restrição às importações estão corretas. Mas têm que ser acompanhadas de outras medidas, de combate à inflação.
Folha - Como o congelamento de preços?
Cardoso de Mello - Não, congelamento não, mas seguramente tem que ser reintroduzido o controle de preços.
Folha - Que preços?
Cardoso de Mello - Os preços-chave da inflação. Os que pesam, dos grandes oligopólios.
Folha - O governo afirma que, contendo o consumo, contém a inflação e freia as importações.
Cardoso de Mello - Bobagem. A inflação está em torno de 2,5% em março e vai subir. Quando chegar a 4%, a economia se reindexa automaticamente.
Folha - Não há como impedir a indexação informal?
Cardoso de Mello - Absolutamente. O governo pode continuar com essa política de câmbio, desconhecendo que a inflação está comendo. Mas aí você vai sobrevalorizar mais ainda o câmbio, com todas as consequências.
Folha - A ajuda externa a México e Argentina não mostra que esses dois países estão contornando a crise?
Cardoso de Mello - Seguramente não. No México, houve medidas de salvação no primeiro momento, mas os desdobramentos da crise ainda estão por ocorrer. Resta saber qual será a taxa de inflação do México.
Folha - O destino do Plano é acabar como os anteriores?
Cardoso de Mello - Se não forem tomadas providências, acaba como os outros.
Folha - Que providências?
Cardoso de Mello - Aí é um problema, porque esse clima no Brasil, de troca de acusações, não é muito bom para isso. É preciso fazer um diagnóstico objetivo. Não adianta ficar dizendo que vazou informação, ou que há uma conspiração da esquerda com os especuladores. Nesse clima não se vai encontrar solução nenhuma.
Folha - O sr. defende reformas estruturais. A reforma constitucional pode ajudar?
Cardoso de Mello - A reforma constitucional não tem nada a ver com o problema da inflação. Os desequilíbrios da economia brasileira dizem respeito ao problema de preços relativos, de taxa de câmbio sobrevalorizada.
Esse é outro mito que estão vendendo aí: que o combate à inflação depende da reforma constitucional. Não é verdade. É uma manobra perigosa, que pode levar a botar a culpa no Congresso pelo fracasso do Plano Real. Quando o plano, hoje, para qualquer observador isento, já tem todos os problemas que discutimos.
Folha - Mesmo assim, o sr. defende reformas mais profundas.
Cardoso de Mello - Defendo. Temos que enfrentar o problema, porque essa recorrência de planos põe uma questão. A sociedade brasileira precisa encontrar um caminho negociado para acertar isso.
Folha - A criação de mecanismos de intervenção, entre bancos centrais, é importante?
Cardoso de Mello - Claro. No mundo inteiro, as pessoas responsáveis, independentemente de ideologia, sabem que o mundo tem que estabelecer regras para essa movimentação de capitais. Isso não afeta só a nós: afeta a eles aqui. Agora, o diabo é que regras pôr. Isso é uma outra questão, complicadíssima.
Queria acrescentar uma coisa. Na verdade, esses planos neoliberais decorreram, antes de mais nada, de um impulso externo: a mudança da política norte-americana no fim da administração Bush em relação à América Latina.
Na crise da dívida, qual era o problema com os EUA? Pagar a dívida. O que eles recomendavam? Exportações a qualquer custo. Desvalorizações do câmbio, câmbio realista... Quando a crise da dívida foi absorvida -especialmente a partir das assinaturas dos acordos mexicano e brasileiro-, mudou a política. Qual é ela agora? Superar o déficit que eles têm com o Japão, com o superávit comercial com a América Latina. Os bobos no Brasil pensam que essas idéias nasceram lá.

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