São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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As paixões do sublime

VICTOR KNOLL

Uma Investigação Filosófica sobre a Origem de Nossas Idéias do Sublime e do Belo Edmund Burke.
Tradução, apresentação e notas de Enid A. Dobránszky. Papirus/ Editora da Unicamp 181 págs.
R$ 12,00

O tratado de Edmund Burke ganha o público em 1757 e menos de dois anos depois a obra conhece a segunda edição, sendo logo difundida na Alemanha onde exerceu grande influência. O Enquiry divide-se em cinco partes, ocupando-se de inicio com o exame das paixões sobre as quais se assentam o sublime e o belo, para logo em seguida abrir espaço para o estabelecimento das determinações do conceito do sublime e depois voltar-se para o belo. A quarta parte é dedicada ao estudo das causas do sublime e do belo, cujo tratamento procura conferir acabamento teórico ao desenho conceitual anteriormente estabelecido. Por fim, Burke fecha a sua obra com algumas considerações sobre os compromissos do sublime e do belo com as palavras; ainda que breve, as observações aqui feitas detêm um grande interesse histórico, uma vez que, à luz do exposto no tratado, procura afastar a poesia do conceito de imitação e, assim, abrir espaço para o então nascente valor atribuído ao gênio. Burke acrescenta à segunda edição, a título de introdução, um ensaio sobre o gosto.
O âmbito das preocupações de Burke pode ser indicado como o de uma psicologia fundada no empirismo. Os conceitos do sublime e do belo não são tratados na sua relação direta com a arte, mas, antes , do sujeito com a natureza ou com o mundo. No derradeiro parágrafo da obra, Burke declara expressamente o lugar do seu discurso: "Meu intuito não foi abordar a crítica do sublime e do belo em alguma arte, e sim tentar estabelecer os princípios que permitam determinar, distinguir e compor uma espécie de padrão para eles; julguei que poderia atingir esses objetivos de modo mais seguro investigando as propriedades das coisas naturais que nos inspiram amor e admiração e mostrando de que maneira sua ação produz essas paixões."(p. 181) Entretanto, o Enquiry foi fundamental historicamente, ao lado da Aesthetica de Baumgarten, para a implantação de uma reflexão sistemática e autônoma acerca das categorias estéticas. Embora de maneira esporádica, Burke lida com objetos artísticos e procura apontar as relações do sublime ou do belo com o universo propriamente artístico. Ocupando-se com as paixões que o sublime e o belo despertam no espírito, contribuiu para firmar aqueles conceitos na apreciação ulterior dos objetos artísticos.
Burke procurou demarcar o âmbito de manifestação do sublime e o da beleza mostrando a especificidade de um e de outro. O sublime não é uma intensificação do belo. Além de conceitos distintos, em virtude de suas determinações, são até mesmo opostos. Ao sublime convém o indivíduo, o medo e o terror, o anguloso e o áspero enquanto que a beleza diz respeito à sociedade, à alegria e ao prazer, à mudança contínua e ao liso. O conceito de beleza está determinado pelos sentimentos coletivos do amor e da benevolência enquanto o sublime pelos sentimentos individuais do medo e do terror. A experiência do sublime não se realiza como pleasure, mas por outra afecção que lhe é peculiar: o delight. Assim, Burke institui a possibilidade de uma analítica do sublime e de uma analítica do belo, imprimindo à reflexão sobre o sentimento estético uma nova direção.
O ponto de partida de Burke encontra-se no reconhecimento de que há no homem duas tendências fundamentais: uma que o leva a conservar o seu próprio ser e outra que o conduz para a sociedade. O sentimento do sublime se funda no primeiro enquanto o segundo realiza a beleza. O belo reúne, o sublime isola; o belo civiliza, o sublime lança o eu nas suas profundezas e faz com que o sujeito se volte completamente para si mesmo. O reconhecimento da especificidade do sublime e de sua relação para com o indivíduo contribuiu para o desenvolvimento de uma concepção da arte fundada no gênio.
Burke trabalha o conceito do sublime e do belo conferindo-lhes , ao mesmo tempo, caráter objetivo e subjetivo. O discurso transita habilmente por aqueles dois campos que, em princípio, constituem uma dicotomia onde um exclui o outro. O propósito da obra é o de esclarecer a origem das idéias do sublime e do belo. Aqui o termo idéia guarda o sentido original de imagem. Trata-se de investigar a atividade da imaginação e, mais, a origem daquelas imagens em nosso espírito. Se de um lado a atividade que produz a imagem concerne ao subjetivo, já a sua origem detém um caráter objetivo. O sublime importa em um movimento da interioridade determinado por qualidades encontráveis na efetividade da natureza ou do mundo. Burke estabelece uma circularidade entre o homem e a natureza, entre o eu e o mundo. Dentro deste quadro encontramos também o reconhecimento de uma correlação entre o espírito e o corpo: "A ligação entre nossos espíritos e corpos é tão estreita e íntima que a dor ou prazer de uns não podem deixar de ser sentidos pelos outros."(p. 139) Para avaliarmos a importância do vínculo reconhecido por Burke entre o espírito e o corpo, basta lembrar que a distinção cartesiana entre res cogitans e res extensa detinha livre circulação no interior da reflexão filosófica e científica.
Antecipando a Psicologia experimental, de carárter associacionista, o método de Burke, ao tratar as determinações do sublime e do belo, é o da observação e da descrição. Já encontramos em seu discurso uma psicologia fundada na fisiologia, muito embora a sua investigação não procure amparo no experimentalismo típico que aquela disciplina irá exercer na segunda metade do século XIX, no seu afã de cientificidade. De fato, ao tratar da distinção dos corpos ásperos e angulosos de um lado e, de outro, dos lisos, os quais proporcionam um sentimento agradável e assim são solidários da beleza, refere-se à tensão e contração das fibras musculares; em outro lugar fala de impulsos nervosos para indicar a geração do sublime.
A fundamentação fisiológica marca, senão a interdependência entre o objetivo e o subjetivo, ao menos o compromisso que estes dois lados mantêm entre si. A relação entre o sublime e o terror é um exemplo. O sublime se funda no terror que se dá como um movimento da interioridade; entretanto, são as dimensões objetivas que o despertam "quando os raios de luz refletidos pelo objeto imprimem instantaneamente a imagem integral na retina ou na parte posterior nervosa do olho. ... Além disso, se admitirmos que apenas um único ponto de um objetpo é perceptível a cada vez, o resultado não será muito diferente; pelo contrário, tornará mais evidente que o sublime deriva da grandiosidade de dimensões."(p. 142) Em seguida indica a colaboração dos nervos e dos delicados músculos na movimentação do órgão (o olho) na apreensão de um objeto de grandes dimensões que infunde o terror acordando o sentimento do sublime. Apoiado na observação e na descrição, Burke realiza uma análise da percepção fundada na fisiologia, tendo em vista mostrar a geração do sublime e do belo. O discurso tem uma ambição explicativa. Ciência da natureza e ciência do espírito caminham de mãos dadas, não se opõem, antes, se completam. Da apreensão do fenômeno natural à explicação dos movimentos do espírito.
De modo geral, o Enquiry aponta para o reconhecimento de um sentido estético, ao qual atribui especificidade e, assim, o reconhece ao lado do sentido moral. Temos aqui outro passo importante para a constituição da Estética como disciplina autônoma. A estética e a ética são reconhecidas como âmbitos independentes da indagação. Um exemplo o temos quando Burke, ao tratrar do sublime, destitui a contermplação estética de finalidade prática. Sofrer, durante uma tempestade, os riscos do mar revolto é, sem dúvida, um perigo efetivo e pessoal e como tal é terrível; entretanto, a contemplação de tal cena é sublime. Temos aí, também, a demarcação entre o efetivo e o imaginário. Temos aí a indicação que o imaginário qualifica o efetivo.
A última parte trata das palavras e detém especial interesse por força de duas indicações relativas ao poema. No que concerne à geração do sublime e do belo pela arte literária, Burke adverte que a poesia não constrói imagens (cópias) das coisas, mas, antes, a sua tarefa é a sugestão. Por esta via, temos a contestação da poesia como arte imitativa, e ao mesmo tempo, a insinuação que a criação é um ato do gênio: o poder da imaginação.
Os fundamentos filosóficos com os quais Burke lida são provenientes de John Locke, desde a consideração dos órgãos sensoriais e da percepção até a classificação das palavras, como também recorre à doutrina de Newton ao invocar a autoridadade da Óptica. Por outro lado, exerceu influência imediata sobre seus contemporâneos como Lord Kaimes e o grande pintor Reynolds, e, como é sabido, as teses do Enquiry chegaram até Kant.

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