São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Dilemas do sublime

FAUSTO PIETROBON
EDITORA PAPIRUS, 224 PÁGS

R$ 14,50

A estética ou, melhor dizendo, a distinção entre o que é estético e o que não é, sempre interessou a Lyotard, visto considerar ele que o artista -o artista consequente- se encontra em situação semelhante à do filósofo: ambos trabalham sem conhecer as regras do que estão fazendo e, se possível, para descobrí-las. Para ele, esta é, justamente, a maneira de funcionamento do juízo reflexionante kantiano, tema central de "Lições sobre a Analítica do Sublime".
Se o título do livro destaca o sublime, na realidade os aspectos originais de leitura envolvem toda a "Crítica da Faculdade de Juízo Estética", primeira parte da "Crítica da Faculdade do Juízo" (Kant, I. "Kritik der Urteilskraft", 1791. Traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho, 1980 "parcial" e de Valério Rohden e António Marques, 1993) e, desta, Lyotard propõe uma interpretação diferente das clássicas.
Para unificar o pensamento crítico, o texto de Kant veio fazer a requerida ligação entre os domínios teórico e prático. As interpretações clássicas privilegiam este papel e aplicam o modo de funcionamento do juízo reflexionante sobre aquele do juízo teleológico, legitimando este último a deduzir o princípio de uma teleologia da natureza (domínio teórico) para a liberdade (domínio prático): a idéia reguladora de uma finalidade da natureza. Elas só precisam da função heurística da faculdade do juízo, ou seja, daquela em que a faculdade "inventa seu princípio, a finalidade, e guia-se por ele para decifrar as leis empíricas da natureza" (Lyotard, pág. 11). (Observar que o erro da tradução, que apresenta "inverte" no lugar de "inventa", deixa o parágrafo sem sentido).
Há que se considerar, contudo, uma outra função da faculdade do juízo, a "tautegórica" (uso a trad. brasileira), que é "somente este fato notável que o prazer ou o desprazer são, ao mesmo tempo, um 'estado' da mente e a 'informação' que ela recebe quanto ao seu estado" (id., pág. 12). (Tradução modificada. Uso "mente", seguindo a trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho, no lugar de "alma"). Por este caráter, a faculdade de juízo é "subjetiva" e descredencia a estética, "análise das condições a priori (de) sensações inteiramente 'subjetivas'" (id., ibid.), como intermediadora entre o entendimento e a razão. Esse impassse é evitado em se transformando o motivo do prazer -estado psicológico- numa harmonia lógica entre duas faculdades do conhecimento -entendimento e razão. A partir desta harmonia poder-se-á atribuir uma finalidade à faculdade de juízo estética através da relação das simples formas dos objetos com as faculdades de conhecimento. Fica, então, esta faculdade com o estatuto de "faculdade particular" e a faculdade de juízo teleológica com o de "faculdade de juízo reflexionante em geral" ("Crítica do Juízo", introdução, parágrafo 8), ou seja, a estética é uma simples propedêutica à teleologia.
Concedendo que tal leitura encontra sólidos fundamentos na introdução da terceira "Crítica", Lyotard propõe outra que procura analisar o juízo reflexionante e a estética kantiana em seus aspectos mais elementares -constitutivos- e sua relação com o conjunto do pensamento crítico e filosófico em geral, leitura que não se restringe tanto à temática do texto.
O juízo estético é exposto pela reflexão em seu estado mais primitivo, mais puro e desprovida de qualquer papel teleológico. Este juízo é o reflexionante por excelência. Se o pensamento crítico "deveria ser puramente reflexionante, por definição (ele não dispõe de antemão dos conceitos dos quais pretende estabelecer o uso)" (pág. 14) (Na tradução lemos "tende", ao invés de "pretende"), aquele juízo se identifica a ele. À função "tautegórica" deste juízo é relacionado o problema da possibilidade de encontrar o domicílio de legitimação de um juízo -suas condições a priori- sem nenhuma informação anterior, que é aquele do pensamento crítico.
Lyotard pode, então, dizer que: "se a terceira 'Crítica' pode cumprir sua missão de unificação do campo filosófico, não é principalmente porque expõe no seu tema a idéia reguladora de uma finalidade objetiva da natureza, (mas sim) porque torna manifesta, a título da estética, a maneira reflexiva de pensar que está em ação na totalidade do texto crítico" (pág. 15). Esta interpretação, além de conferir uma outra valorização à estética, implica em que grande número de problemas do complexo texto da "Crítica do juízo" e do próprio criticismo tenham que ser retomados e reinterpretados.
Apenas alguns exemplos sem os comentários que demandam: (a) a questão, paradoxal em aparência, da análise dos juízos estéticos, onde não há domínio, através das categorias de entendimento -domínio teórico; (b) as temporalidades da estética; sua distinção com a do conhecimento por conceitos e com a do imperativo categórico; (c) o problema do sujeito no juízo-de-gosto e da partilha deste juízo. Intersubjetividade? Permite este juízo pensar o outro e o político? E o sublime? (d) porque a inclusão de uma "Analítica do sublime" nesta "Crítica" se els "destrói" a estética e, além disso, vai contra o projeto de unificação do pensamento crítico? Etc.
Se fosse preciso atribuir um propósito a este livro, escreve Lytoard, "poder-se-ia dizer que estas lições visam a isolar, no texto kantiano, a análise de um 'diferendo' no sentimento, que é também aquela de um sentimento do 'diferendo', e a levar o motivo deste sentimento ao transporte que conduz todo pensamento, o crítico inclusive, aos seus limites" (Não traduzido). (Traduzo "différend" por "diferendo", por falta de opção. Lyotard o explica assim: "diferentemente de um litígio, um 'diferendo' seria um caso de conflito entre, pelo menos, duas partes, que não poderia ser resolvido equitativamente por falta de uma regra de julgamento aplicável às duas argumentações." "Le différend". Minuit, 1983, pág. 9. A tradução por "conflito", adotada em "Lições", não satisfaz).
Uma das passagens mais belas do texto é, justamente, aquela em que o dilema do sublime -a imaginação incapaz de fornecer uma forma à razão que a exige- é aplicado ao pensamento crítico que sabe não poder conhecer seus porquês, seus a priori, mas não pode evitar de os continuar procurando e, neste processo, revelar seus limites.
A escrita de Lyotard dá a impressão de que ele está refletindo ao mesmo tempo em que escreve, que o assunto está ainda em fase de elaboração. No "Lições...", publicação de resumos de cursos, isto aparece com mais evidência. Uma das consequências desta forma de escrita é a impossibilidade de pretendermos afirmar, com certeza, qual é o pensamento definitivo do autor sobre os assuntos que está tratando. E, de fato, a vocação de Lyotard é a de retomar sempre o já pensado, inclusive por ele próprio, para questioná-lo outra vez e perguntar: o que isto quer dizer? Em seus termos isso seria defender o pensar em seu "diferendo" com o pensamento.
Nesta perspectiva, enquanto se dedicou à ontologia da verdade, pensando o problema de como evitar o terror injusto, Lyotard não conseguiu avançar na questão da relação da verdade com os homens, o que confessou no "Au juste" (1977). Então passou da problemática da injustiça para a da justiça e, como meio de abordá-la, interessou-se pela pragmática da linguagem e pela "Crítica do Juízo", assuntos que o ocupam até o presente. Esta é a linha do texto em questão. Nele o autor adota, rigorosamente, o vocabulário kantiano, o que representa uma dificuldade a mais para a tradução. Quanto a esta, tomo mais dois exemplos, para justificar por que ela descaracteriza o escrito original. No índice (pág. 5), lemos "campos" traduzindo "domaines", o que é grave, pois, no parágrafo 2 da introdução da "Crítica do Juízo", Kant faz uma distinção entre "campo", "território" e "domínio", que é fundamental para a compreensão do que segue. A confusão na tradução dessas palavras está presente em todo o livro. Ainda no índice, "présentation" é traduzida por "representação" (pág. 6), ou sejam, troca-se a imaginação pelo entendimento. Isto é um contra-senso de enormes consequências. Não foi respeitada nem a terminologia de Kant nem a de Lyotard.

FAUSTO JOSÉ PIETROBON é doutorando em filosofia na USP

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