São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A vaca e o São Cristovão

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Andei uns dias deprimido, com uma inveja homicida do José Serra que só agora, já cinquentão e ministro, viu pela primeira vez uma vaca. Deve ser uma epifania, um êxtase, um "punto luminoso" poundiano a gente ver, de repente, pela primeira vez, um objeto virgem, intocado de nosso olhar.
Acredito que o superei. Embora sem ser ministro de nada, acabei de ver pela primeira vez um torcedor do São Cristovão. Eu sabia vagamente da existência de seres extraordinários, torcedores de craques que os cronistas esportivos chamavam de "alvos", porque a camisa deles era branca.
Além do mais, antes que fosse criado o departamento de futebol que arruinou o clube, meu pai remara pelo São Cristovão, exibia com orgulho a medalha de bronze que ganhara em 1922, ano do centenário. Doou-a ao esforço de guerra, quando o Brasil rompeu relações com o Eixo. Magoado, ignorou o futebol pelo resto da vida.
Ontem, entrou pela minha sala um senhor que vinha entregar os livros que eu comprara num sebo. Vestia uma camisa adequadamente ensebada, mas com o escudo fatal. Perguntei se era mesmo São Cristovão e ele, fatigado de confessar o mesmo crime, disse que sim. Testei-o, para me certificar de que não se tratava de um impostor. Ele falou em Madalena, em Santocristo, em Carreiro e até no Afonsinho, que se formou médico e foi jogar no Fluminense.
Não entendeu quando o gratifiquei acima das minhas posses mas bem abaixo de suas necessidades. Riu envergonhado, parecia o Assis Valente quando ria, aqueles dentes brancos, enormes.
Levei-o até a porta. Contemplando a gorjeta que lhe dera, ele admitiu que ganhara o dia. Já dentro do elevador riu outra vez, com seus dentes enormes, brancos.
Fiquei sozinho mas fiquei bem. Eu também ganhara o dia, talvez mais do que isso. Ainda há gente que resiste à modernidade, ao lucro acima de tudo, que se agarra a valores que não produzem resultados. Gente com orgulho em vestir a camisa ensebada de uma glória antiga.
Não precisava mais invejar o Zé Serra. Afinal, ele só viu uma vaca.

Texto Anterior: Os buracos da vida
Próximo Texto: O Carnaval e suas repercussões imediatas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.