São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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O Carnaval e suas repercussões imediatas

FLORESTAN FERNANDES

As repercussões do Carnaval não podem ser dissociadas das funções das escolas. Só que ele constitui um momento de exteriorização pública dessas funções e de sua condensação em um curto período de tempo. Os que, durante o ano, viveram como formigas, trabalhando sem cessar em fantasias, adereços, imaginação musical, projetos de desfiles, carros alegóricos etc. são recompensados em apenas três ou quatro dias e enlaçam ainda mais profundamente as escolas com a exibição de sua inventividade.
Elas são o componente comunitário duradouro e nuclear. Exercem -ou poderiam exercer- as influências marcantes e desempenham, de modo latente ou aberto, funções relacionadas com a ressocialização de suas camadas raciais e populares. É o Carnaval, porém, que estabelece os liames entre essas funções e sua continuidade.
A ressocialização alcança vários níveis da cultura e da sociedade urbana ambiente. O mais expressivo parece ser o das relações das raças. As escolas deveriam dar mais atenção a esse aspecto. Do Carnaval decorre uma das criações originais da cultura. Os brancos sentem e tomam consciência de uma área na qual a supremacia escapa de suas mãos. E que requer o expurgo de marcas e estigmas raciais contra o negro, o mulato e os segmentos populares envolvidos no funcionamento das escolas e na eclosão do Carnaval. Se isso não acarreta uma alteração significativa nas estruturas raciais e sociais da cidade como um todo, provoca consequências que têm a ver com a posição social e o prestígio das raças em confronto.
A imagem da competência e criatividade da gente que produz o Carnaval entra em questão e, com ela, a necessidade de modificar o contexto nebuloso e cruel das relações das raças. As linhas de resistência à deterioração qualitativa da criatividade das escolas precisam ser redefinidas ano a ano. Marcelo Coelho, em seu comentário sobre o Carnaval deste ano, aponta efeitos dessa degradação e sua marcha inexorável.
É decisivo, pois, resguardar a integridade das escolas e o próprio valor sociocultural do Carnaval. Os avanços do capitalismo pressionam sobre a mercantilização de todas as atividades, especialmente na manipulação do consumo em massa. Os "protetores" puxam as vantagens para o seu lado. Os órgãos oficiais, os bicheiros, a máfia dos narcóticos e os políticos clientelistas buscam compensações que não se esgotam no ciclo carnavalesco. Conseguem introduzir temáticas alheias aos fins das escolas e da sua maneira sintética -tradicional e moderna- de encarar o Carnaval.
Encadeiam-se, assim, propósitos que exigem seleção rigorosa. Cabe às escolas a intervenção no controle de tais efeitos erosivos e corrosivos. A estética do Carnaval se volta para o estilo e o brilho das criações inovadoras e sua contribuição à permanência como forma coletiva de arte.

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