São Paulo, segunda-feira, 3 de abril de 1995
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Um exame necessário?

ROGERIO MENEGHINI

A proliferação de cursos superiores de má qualidade, somada ao credenciamento descriterioso de universidades, tornaram o ensino superior uma questão calamitosa. A atual equipe do Ministério da Educação é composta por membros com ampla visão acadêmica e pelas propostas lançadas nesse curto espaço de tempo vê-se que está disposta a apresentar soluções, mesmo tendo de enfrentar setores corporativistas e grupos econômicos poderosos.
A medida provisória, ora em debate, encaminha soluções lúcidas para duas questões de implicações profundas no sistema do ensino superior. Reestrutura o Conselho Nacional de Educação, com funções e composição alteradas, de forma a evitar a representação de corporações da área e implantar um processo dinâmico de acompanhamento dos cursos nos níveis superior e básico.
Intervém ademais na questão do poder na universidade, limitando o peso de votos de alunos e funcionários e admitindo, como se faz em todo o mundo, que a universidade é uma instituição meritocrática e hierarquizada em relação à carreira acadêmica. Os debates em seus colegiados não contrapõem grupos em função de ideários políticos, mas sim de idéias sobre o avanço do saber, da difusão dos conhecimentos e do papel global da universidade na sociedade, temas da preocupação natural e contínua dos docentes.
A terceira proposta da MP é bem mais polêmica e tem encontrado forte resistência por parte de setores acadêmicos, que vão além das corporações e facções políticas usuais. Trata-se do exame aplicado aos alunos após o cumprimento de todo o currículo, cuja finalidade seria avaliar os cursos e não o aluno, como tem enfatizado o Ministério da Educação.
A proposta foi bem recebida em geral pela população, horrorizada com a perspectiva de sofrer diretamente as consequências da atuação de profissionais incompetentes. No entanto, o procedimento torna-se na MP apenas uma ferramenta de avaliação de cursos e não uma peneira para o credenciamento profissional. A nota não obstará ao aluno de seguir a sua profissão, do ponto de vista do governo.
Salta logo à vista uma questão ética. Suponhamos que o exame se constituísse num efetivo indicador de aprendizado do aluno nas questões consideradas fundamentais para o exercício da profissão. Como poderia o governo ignorar os dados, por ele próprio gerados, de que, imaginemos, 70% dos formados em medicina estão inaptos a exercer a profissão, utilizando-os exclusivamente como instrumento de avaliação dos cursos?
Os proponentes do exame diriam que se está apenas constatando um fato já existente, na tentativa de uma melhoria. Porém a detenção dessa informação, ao nível de cada formado, implica numa possibilidade do governo atuar ou não sobre os egressos dos cursos. Ao definir-se pela segunda opção, deverá estar assumindo uma responsabilidade consciente das possíveis consequências dessa atitude.
Por outro lado, a precariedade desse exame como indicador único de avaliação de cursos é plenamente aceita pelo ministro, como se depreende de seu artigo recente (Folha, 26/03). Se por um lado é razoável admitir que o exame induza uma tentativa de melhoria em cursos com baixa qualidade de ensino, ao menos no que diz respeito à ministração do currículo mínimo, pode-se argumentar que em instituições de bom nível e mais imaginativas ele pode virar uma camisa de força.
A diversificação curricular intensa em cursos de uma mesma modalidade, ou mesmo de estudantes de um mesmo curso, é uma experiência que está se mostrando rica em outros países e que não pode ficar atrelada a currículos mínimos.
Mesmo em áreas mais profissionalizantes, há experiências interessantes sendo maturadas, tais como uma proveniente do reconhecimento de que o reducionismo dos conhecimentos da medicina às ciências básicas é ainda precário, incitando modificações curriculares significativas.
Tenho, ademais, a suspeita de que esse exame teria uma baixa capacidade discriminatória. Um fator importante na aprendizagem é a qualidade dos estudantes com que se conta de partida, isto é, no vestibular.
Por razões sobejamente conhecidas, os estudantes de melhor preparo vão para as melhores universidades públicas e os que foram privados de uma boa formação básica vão para as demais escolas, alvos da maior preocupação do governo neste instante. Entre essas últimas, um esforço de se contratar professores mais titulados e prover melhor infra-estrutura terá repercussão limitada se a qualidade discente não melhorar de forma concomitante.
Em outras palavras, o exame vai medir em grande parte a formação do vestibulando. Se o governo não introduzir outros indicadores na produção de seu "ranking" de cursos, o esforço em melhorar as condições de ensino não serão facilmente mensuráveis e a escola não se beneficiará de melhores alunos.
É interessante notar que um "ranking" de cursos produzido por uma revista local, mesmo que considerado limitado, levou em conta alguns desses indicadores e produziu uma mudança de comportamento dos estudantes quanto à eleição dos cursos.
Em suma, creio que o governo se beneficiará se retirar esse polêmico exame da MP. Sem descartá-lo totalmente, creio que poderia considerá-lo como um indicador a mais que um processo de amostragem permitiria computar de forma relativamente ágil. Certamente há mecanismos para o Ministério da Educação induzir as instituições de curso superior a cooperarem.
Paralelamente, e de forma necessariamente mais lenta, o Ministério deveria se preocupar em coordenar a maturação de um processo mais abrangente de avaliação de cursos, lidando não só com indicadores mas com uma interação construtiva e crítica entre avaliados e avaliadores.

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