São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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Novos rumos na política de drogas alemã

THEODOMIRO DIAS NETO

Marginalização, Aids, Justiça saturada. Com este saldo nada animador, afirma-se, na Europa, a visão de que as drogas não podem seguir sendo uma questão bélica. Determinante neste processo tem sido a atuação de vanguarda dos operadores do direito, que impuseram a discussão na agenda política.
O exemplo alemão é revelador. A última grande revisão da Lei de Entorpecentes data de 1981. Foi, em termos gerais, de orientação criminalizante, fruto de um contexto de ascensão do discurso conservador e supremacia da filosofia norte-americana "war on drugs". Desde então, no papel nada mudou.
É na práxis policial e judicial que surge uma nova tendência. Juízes questionam a constitucionalidade da proibição ao consumo, promotores avalizam inovações desenvolvidas fora da órbita penal e policiais, frustrados com uma guerra sem fim, mudam o alvo, toleram o consumo e dirigem seu poder de fogo contra os cartéis.
Em 1994, a conservadora Corte Constitucional, pressionada por este movimento, decide pela não-punibilidade da posse para consumo de "pequena quantidade" de Cannabis. A decisão não afirma, como na Colômbia, a inconstitucionalidade da proibição. Tampouco aceita o controvertido "direito às drogas", imanente da garantia constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade, defendido, em 1991, por um juiz de Lubeck em sentença de impacto nacional.
Os juízes limitam-se a afirmar a falta de interesse estatal na sanção. É uma construção jurídica que, em bom português, significa: é proibido, mas não punido. O fundamento está na falta de elementos a comprovar o dano à saúde e o "efeito-degrau" da Cannabis (somente 5% dos usuários consomem outras drogas). Não há, entende a Corte, bem jurídico a justificar restrição à liberdade.
A discussão apenas começou. Caberá aos Estados decidirem o que é "pequena quantidade". Diferenças regionais terão impacto. Enquanto a conservadora Bavária se mantém inflexível, os Estados de Schleswig-Holstein e Hessen adotam o padrão holandês de 30 g e estendem a tolerância a até 1 g de heroína.
Embora limitada, a sentença tem o mérito de estar afinada com a realidade. É um marco que dá base jurídica e alento político a inovações. Em Frankfurt, funcionam, há meses, com apoio do MP, "salas de saúde", onde seringas são distribuídas e a aplicação da droga pode se dar higienicamente.
Várias cidades possuem programas de aplicação de metadona em heroinômanos. Hamburgo pressiona por alteração legal para iniciar administração de heroína, a exemplo de Inglaterra e Suíça (em Zurique, fecharam-se os espaços abertos, mas mantiveram-se as salas).
A constatação é de que os danos à saúde decorrem mais das condições de marginalidade social e econômica impostas pela criminalização do que da droga em si. Basta ver o impacto da política liberal de Frankfurt no número de mortes por drogas: 147 em 1991 e 58 em 1994. Outros países europeus registram tal tendência (sem contar o êxito no controle da Aids).
Os conservadores denunciam uma capitulação em que o Estado assume papel de traficante. "Não se trata de capitulação, mas condição para enfrentar o problema", contesta o deputado verde Daniel Cohn-Bendit, autor de projetos descriminalizantes no Parlamento europeu.
Considerando que só parte dos viciados supera a dependência, tal caminho pode ser a única possibilidade de quebra do ciclo vício-crime-prisão. Trata-se de dar ao indivíduo a chance de conciliar a droga com uma vida em sociedade.
Mas, acima de tudo, representa o respeito à decisão individual sobre a vida e a morte. Salvo quando tal decisão envolva dano a terceiro, a tutela penal é autoritária, ou, em versão "democrática", paternalista.

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