São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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A sátira epistolar de Tomás Gonzaga

TOMÁS ANTONIO GONZAGA
NÃO PENSES, DOROTEU, QUE VOU CONTAR-TE

Por verdadeira história uma novela
Verbosos Navegantes, que já deram
Ao globo deste mundo volta inteira:
Uma velha madrasta me persiga,
Uma mulher zelosa me atormente,
E tenha um bando de gatunos filhos,
Que um chavo não me deixem, se este Chefe
Não fez ainda mais, do que eu refiro.
Ora pois, doce Amigo, vou pintá-lo
Nem esta digressão motiva tédio,
Como aquelas, que são dos fins alheias;
Que o gesto, mais o traje nas pessoas
Faz o mesmo, que fazem os letreiros
Nas frentes enfeitadas dos livrinhos,
Que dão, do que eles tratam, boa idéia
Tem pesado semblante, a cor é baça,
O corpo de estatura um tanto esbelta,
Feições compridas, e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta
Nariz direito, e grande; fala pouco
Em rouco baixo som de mau falsete;
Sem ser velho, já tem cabelo ruço;
E cobre este defeito, e fria calva
À força do polvilho, que lhe deita.
Ainda me parece, que o estou vendo
No gordo rocinante escarranchado!
As longas calças pelo embigo atadas,
Amarelo colete, e sobre tudo
Vestida numa vermelha, e justa farda:
Listradas pontas de dous brancos lenços;
Na cabeça vazia se atravessa
Um chapéu desmarcado; nem sei, como
Sustenta a pobre só do laço o peso.
Ah! Tu, Catão severo, tu, que estranhas
O rir-se um Cônsul moço, que fizeras,
Se em Chile agora entrasses, e se visses
Ser o rei dos peraltas, quem governa?
Já lá vai, Doroteu, aquela idade,
Em que os próprios mancebos, que subiam
À honra do governo, aos outros davam
Exemplos de modéstia até nos trajes.
Deviam, Doroteu, morrer os povos,
Apenas os maiores imitaram
Os rostos e os costumes das mulheres,
Seguindo as modas, e raspando as barbas.
Os grandes do país com gesto humilde
Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;
Ele austero os recebe, e só se digna
Afrouxar do toutiço a mola um nada,
Ou pôr nas abas do chapéu os dedos.
*** Caminha atrás do Chefe um tal Robério,
Que entre os criados tem rspeito de aio;
estatura pequena, largo o rosto,
Delgadas pernas, e pançudo ventre,
Sobejo de ombros, de pescoço falto;
Tem de pisorga as cores, e conserva
As bufantes bochechas sempre inchadas:
Bem que já velho seja, inda presume
E o demo lhe encaixou, que tinha pernas
Capazes de montar no bom ginete,
Que rincha no Parnaso. Pobre tonto,
Quem te mete em camisas de onze varas!
Tu só podes cantar em coxos versos,
E ao som da má rabeca, com que atroas
Os feitos de teu Amo, e os seus Despachos.
*** Ao lado de Robério vem Matúsio,
Que respira do Chefe o modo, e gesto:
É peralta rapaz de tesas bâmbias,
Tem cabelo castanho, e brancas faces,
TEm um ar de Mylord, e a toda trata
Como inúteis bichinhos; só conversa
Com o rico rendeiro, ou quem lhe conta
As pontas perfumadas dos lencinhos;
Que é sinal, ou caráter, que distingue
Aos serventes da casa dos mais homens;
Assim como as famílias se conhecem
Por herdados Brasões de antigas Armas.
*** Montado em nédia mula vem um Padre,
Que tem de Capelão as justas honras;
Formou-se em Salamanca; é homem sábio:
Já no Mistério do Pilar um dia
Um sermão recitou, que foi um pasmo;
Labrega no feitio, e meio idoso,
Tem olhos encovados, barba tesa,
Fechadas sobrancelhas, rosto fusco,
Cangalhas no nariz. Ah! quem dissera,
Que num corpo, que tem de nabo a forma
Havia pôr os Céus tão grande caco!
O resto da família é todo o mesmo;
Escuso de pintá-lo. Tu bem sabes
Um rifão, que nos diz, que dos Domingos
Se tiram muito bem os dias santos.
Ah pobre Chile! que desgraças esperas!
Quanto melhor te fora, se sentisses
As pragas, que no Egito se choraram,
Carrancudo Casquilho a quem rodeiam
Os néscios, os marotos, e os peraltas.

Trecho extraído do livro "Cartas Chilenas", editado por Joaci Furtado

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