São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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O POETA DAS FÁBULAS

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

O exigente e implacável Sainte-Beuve não fez por menos: "Ele é o poeta nacional". O mais lido, decorado e traduzido da França. Suas fábulas, em versos de métrica livre e sequência variada de rimas, chegaram até a Cochinchina.
Hoje, 300 anos após sua morte, Jean de La Fontaine permanece firme no mesmo pedestal, repassando a novas gerações os apólogos que o consagraram como o mais genial e bem-sucedido herdeiro do grego Esopo, o patriarca dos fabulistas. Herdeiro na acepção mais ampla da palavra, já que muitas das historietas por ele versejadas tiveram origem no vasto repertório de Esopo.
"A leitura de suas obras espalha na alma, sem que se sinta, as sementes da Virtude, ensinando-nos a nos conhecer sem que disto nos apercebamos, crendo até que estejamos fazendo outra coisa inteiramente diversa". O que La Fontaine escreveu a respeito de seu mestre aplica-se a ele próprio, com todas as vírgulas.
O último Salão do Livro, encerrado há duas semanas em Paris, foi uma festa em homenagem ao poeta. A livraria-museu que em sua honra criaram em Château-thierry montou, no salão, a mais completa mostra de edições nacionais e estrangeiras de seus livros, emoldurada por ilustrações de Oudry, Doré, Fragonard, Grandville, Chaveau e vários outros.
Ao lado, um bestiário especialmente montado pelo Museu de História Natural de Paris, com a bicharada do autor. Nos demais estandes, tão farta era a oferta de novidades e reedições que um suplemento literário parisiense mancheteou: "A febre La Fontaine tomou conta da França".
A temperatura ainda não baixou. Um dos destaques do salão era a edição completa das fábulas em formato de bolso, organizada por Marc Fumaroli e com as gravuras de Oudry. Alain-Marie Bassy preparou outra, em formato maior e mais luxuosa. A Fayard aproveitou para reeditar a biografia de Roger Duchêne e a Gallimard lançou mais uma exegese de Patrick Dandrey, "La Fontaine et les Metamorphoses d'Orphée".
Não estamos tão mal assim em matéria de La Fontaine, muito pelo contrário. Seis anos atrás, a Itatiaia publicou as fábulas, traduzidas por Milton e Eugênio Amado, em dois volumes de capa dura e com um total de 804 páginas.
"Ele merece", declarou Marc Fumaroli ao "Le Monde". E não apenas, diz o professor do Collège de France, pelo valor pedagógico e pela elegância de suas fábulas, mas também por ter ele libertado a poesia da métrica e inventado uma "versificação virtuosa", fluida como "uma peça musical". La Fontaine adorava música, deliciava-se com o melancólico dedilhar de um alaúde, e há quem sinta em sua obra uma sutil influência da música camerística do século 17.
Pouco importa que não tenha sido ele o primeiro a tocar no metafórico "parto da montanha" (a que deu à luz um rato), nem tenha inventado a "galinha dos ovos de ouro". Foi através dele que a maioria das pessoas aprendeu as lições contidas naqueles dois assombros da natureza. Lições sobretudo de sabedoria, a cereja de suas fábulas, em geral protagonizadas por raposas, leões, corvos, lobos, cordeiros e outros animais universalmente aceitos como modelos de astúcia, ingenuidade, afoiteza, fatuidade -e do que mais tenham eles assimilado dos seres humanos. Algumas delas até viraram provérbios, universalmente consagrados pela experiência popular.
Caminho inverso La Fontaine também trilhou, ilustrando adágios seculares cuja sensatez se afinava com o seu modo de ver as coisas. Ou seja, máximas que exaltam as virtudes superiores da previdência (símbolo máximo, a formiga), da pertinácia (um dom lupino), da prudência ("a mãe da segurança") e da perspicácia ("Para certos perigos, grito não adianta: então fala macio e canta").
Todo fabulista é, forçosamente, um moralista. Mesmo aqueles aparentemente amorais, como Millôr Fernandes, o nosso La Fontaine. A comparação é mais do que justa. E, deixemos de falsa modéstia, até lisonjeira para o mestre francês. Quem conhece as "Fábulas Fabulosas" (lançadas pela Nórdica) sabe do quanto o gênio de Millôr é capaz. O que em La Fontaine é ou soa edificante, em Millôr é puro ceticismo, envernizado com um senso de humor digno de Shaw. Moral de uma de suas fábulas: "Todas as opiniões estão erradas". Outras: "Quem ama o feio tem algum outro objetivo"; "No céu não entram sujeitos com idéias"; "O diálogo é possível -só que não conduz a nada"; "Não adianta que sempre haverá um rei pior".
Rei pior do que Luís 14, La Fontaine não conheceu. Foram inimigos temporários -La Fontaine teve seu nome vetado por ele quando estava para ingressar na Academia Francesa de Letras-, afinal se reconciliaram.
Mas não nos precipitemos. Primeiro, Jean de La Fontaine nasceu: em 1621, no ducado de Château-Thierry, na região de Champagne, e entrou para o convento dos padres oratorianos. Distinguiu-se de tal modo nos estudos que acabou em Paris, onde trocou as sagradas escrituras pelas leis do homem. Antes de se formar em direito já era figura fácil nos círculos boêmios e literários da capital, cupincha de Molière, Racine e Boileau.
Em "Les Cinq Tentations de La Fontaine", que também acaba de sair em livro de bolso na França, Jean Giraudoux lista os obstáculos (ou as tentações) que o poeta teve de superar para construir sua obra literária. Ei-las: a vida provinciana e burguesa (herdou do pai a sinecura de inspetor de águas e florestas), as mulheres, a vida noturna de Paris, as vaidades intelectuais e a religião (flertou com o jansenismo, o protestantismo, o agostinismo). Teve, ainda, de vencer a preguiça, certamente aguçada pelo bem-bom que lhe proporcionaram diversas damas da corte, duas delas duquesas, nenhuma tão perseverante quanto a Mme. de la Sablière, que o manteve sob as asas durante 20 anos.
Charmoso e "causeur" sem rival, era o sal e a pimenta dos saraus mais nobres de Paris. Provocava ciúmes, mas seu único desafeto conhecido foi um tal de Furetière, crítico verrineiro e sem importância cujas restrições ao poeta não resistiram à posteridade. Bajulado por homens e mulheres, caiu nas graças de Nicolas Fouquet, o czar das finanças de Luís 14, a quem dedicou um poema, "Adonis", e à sombra de quem tornou-se íntimo do Rei-Sol.
La Fontaine acreditava que escrever bons apólogos, dignos de Esopo, era privilégio de alguns poucos mortais, merecedores de "honras reais ou mesmo preitos divinais". As honras ele as teve até o dia em que tomou, publicamente, as dores de Fouquet, que caiu em desgraça em 1661. Para fugir à ira do rei, autoexilou-se durante um ano em Limousin. Perdoado, retornou a Paris e voltou a frequentar Versalhes.
O fundamental, o Rei-Sol não pescou. As fábulas de La Fontaine eram hostis ao modelo de monarquia vigente na Europa, e em especial na França, do seu tempo. O poeta sonhava com uma monarquia descentralizada e desburocratizada, impermeável a guerras e sem atritos com a Santa Igreja. No mundo dos seus sonhos, o poder militar cedia lugar a um poder espiritual, inspiração e arrimo de uma harmonia constantemente ameaçada pelo absolutismo. Não por acaso, o tema mais frequente em suas fábulas é a paz. Inclusive entre animais tradicionalmente rivais.
Para Giraudoux, La Fontaine foi a versão francesa de Sherazade. Suas fábulas seriam as mil e uma noites do século 17. La Fontaine, porém, não nos deixou apenas apólogos estrelados por bichos, gente (inclusive Sócrates) e deuses (do Olimpo grego).
Além das fábulas, escreveu contos e novelas licenciosos, inspirados em Boccaccio, Ariosto, e, no espírito, em Rabelais.
Com sua "poética do prazer" (a expressão é de Giraudoux), escandalizou prelados e papa-hóstias de ambos os sexos, sem abrir mão de sua crença na superioridade do epicurismo. La Fontaine acreditava que só por intermédio da beleza -e do prazer indissociável da beleza- podemos chegar à verdade.
Na velhice, curvou-se à terrível incógnita do além e reaproximou-se da Igreja. Passou, então, a compor poemas religiosos e a praticar penitências. Pouco antes de morrer, renegou seus contos.
Moral da história: todo lobo tem seu dia de ovelha.

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