São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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O ceticismo gentil de La Fontaine

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Só existe um ponto, indivisível, que é o ponto certo de onde se observar um quadro; mas quem pode determinar onde fica este ponto, quando o que se observa é a verdade?"
Pascal

Não há quem não conheça as "Fábulas" de La Fontaine. Ou será que não? Para a maioria de nós, La Fontaine se confunde com Esopo; e Esopo é o criador original, mas nunca lido, de histórias que só conhecemos em versões para crianças.
Há alguma justiça, até, nesta transferência de autoridade: a história das "Fábulas" de Esopo mais parece uma das ficções de Jorge Luis Borges. Compostas no século 6º a.C., foram redigidas 200 anos mais tarde por Demétrio. Mas a versão de Demétrio, por sua vez, só chegou até nos graças a uma edição renascentista do século 14. E é com base nesta última (e algumas outras obras, incluindo o "Panchatantra" indiano) que La Fontaine vai escrever, entre 1668 e 1694, seus 12 livros de "Fábulas", em verso.
Pode soar curioso que um dos maiores poetas clássicos da França tenha concebido as duas obras mais importantes de sua vida como imitação de outros autores. (Além das "Fábulas", La Fontaine é o autor de "Contos e Novelas em Verso", a partir de Boccacio, Ariosto, Maquiavel e outros mestres renascentistas italianos). Mas a reescritura explícita de modelos antigos não é menos característica de seus contemporâneos Pascal (que reescreve Montaigne e Santo Agostinho), La Rochefoucauld (Montaigne) e La Bruyère (Teofrasto), para não falar da recriação do teatro grego por Racine.
"Tudo já foi dito", sentenciava La Bruyère, "e nós chegamos muito tarde, depois de mais de 7.000 anos que existe o homem, e que o homem pensa". O classicismo, um dos tantos nomes para a literatura moderna, vai transformar o destino de quem chega tarde no seu melhor instrumento.
A fábula é um gênero distante do nosso horizonte literário. Algo nos incomoda nestas histórias tão simples. É alguma coisa da mesma ordem do que nos molesta na leitura de máximas, pensamentos, ou "caractères", três outros gêneros bem explorados na literatura francesa do século 17. No mundo moderno do romance -outra invenção da época de La Fontaine-, a fábula, aparentemente, não tem mais lugar.
A presença forte da alegoria é, sem dúvida, uma parte do que nos distancia das fábulas. A despeito das lições de Walter Benjamin e Paul de Man, a alegoria, no sentido estrito, está longe de ser a expressão preferencial do nosso tempo. (A maior parte das vezes, quando os críticos falam em "alegoria", querem dizer "ruína", no sentido mais sentimental e antibenjaminiano.)
Num senso mais amplo, é bem verdade que toda ficção, antiga ou moderna, é alegórica. Toda palavra literária está calcada numa palavra anterior -que é o que define a alegoria. E toda narrativa é uma forma de alegorizar relações entre figuras de linguagem. Mas alegorias com nome, sobrenome e uma psicologia ("Capitu", por exemplo, ou "Charles Swann") são mais fáceis para nós de aceitar do que um leão que é rei, ou um peixe que fala. A alegoria, na era moderna, está mascarada pelas ilusões do realismo, e por um movimento que faz o que pode para eliminar a distância entre as palavras e as coisas. No classicismo, pelo contrário, este intervalo é reconhecido, de antemão, e sem muita angústia, como o próprio espaço da literatura.
Além da alegoria, a fábula tem ainda algo de parábola, outro gênero desconfortável de se ler. Como as parábolas, as fábulas incitam o leitor a encontrar um significado "por trás"; mas a resolução, a "moral" de uma fábula jamais parece satisfatória. Fábulas e parábolas são gêneros delicados de apocalipse, que estimulam e frustram a descoberta de uma verdade.
Maravilhosamente irônico, La Fontaine está longe, contudo, de ser o redator de um pequeno guia, ou enciclopédia alegórica do juízo moral. Do ponto de vista da construção, ele é um dos grandes fabricantes de versos, capaz de escandir palavras nos mais variados metros, com uma fluência que é a própria imagem do estilo natural, louvado por Boileau. Do ponto de vista dos significados, seria grosseiro reduzir sua escrita a uma série de aforismas ilustrados. Partindo de Esopo, ele acaba por transformá-lo numa outra coisa -nem alegoria, nem apocalipse, mas uma outra forma francesa de revelação.
Menos que uma biografia, a vida de Esopo, recontada por La Fontaine, já é parte integral das "Fábulas". Este prefácio, ou homenagem, é uma grande coleção de histórias, onde duas se destacam por seu caráter premonitório. Na primeira, Esopo -um escravo frígio, que deve a sobrevivência a seu talento de fabulista- escapa da punição, ao se comparar às cigarras, cuja única virtude é a voz e o único humor a inocência. Não por acaso, a primeira fábula de La Fontaine será "A Cigarra e a Formiga". Aqui, como em outras histórias, La Fontaine, o homem da corte, e Esopo, o escravo, se confundem, cruzando papéis. O que em Esopo é uma fábula do vencedor, em La Fontaine, modulado por um outro tom, se transforma na fábula do vencido.
A outra história narra a morte de Esopo. Tendo conquistado sua liberdade, por força de suas palavras, algum tempo mais tarde o ex-escravo Esopo atrai para si a ira dos cidadãos de Delfos. Incapazes de compreender suas fábulas, os homens de Delfos são ridicularizados por ele, em mais uma história. Para se vingar, escondem em sua bolsa um cálice de ouro do templo. Quando Esopo deixa a cidade, é surpreendido com o cálice, acusado de roubo e condenado a jogar-se de um penhasco. Nessa fábula, então, da morte de Esopo, o contador de histórias morre por efeito de uma outra história, falsa.
As ironias se multiplicam quando pensamos que é La Fontaine quem faz Esopo morrer, mais uma vez, na sua fábula -e em Delfos, ainda por cima. Esta não é só uma morte narrativa: é uma morte das fábulas de Esopo, para renascerem, num outro tom, transfiguradas nos versos de La Fontaine. São tantos os deslocamentos de identidade, como são tantas as personificações e antropomorfismos das fábulas, que a interpretação se suspende, num ponto indefinido. "Somos às vezes tão diferentes de nós mesmos quanto dos outros", escreveu La Rochefoucauld. Isto, para La Fontaine, é também uma teoria da sobrevivência no domínio de Versailles.
Ninguém pode olhar o sol de frente: este é um dos temas perenes da poesia. Na capital do século 17, ninguém poderia, sem risco de vida, observar de frente o Rei Sol. As "Fábulas" são, como já vimos, todas as histórias de todos os homens; mas incluindo, em particular, as histórias e a gente da França de Luís 14. Neste contexto, La Fontaine também descobre, como o Hegel da "Estética", 150 anos mais tarde, que "a prosa começa no escravo". Alegoria e fábula são formas escravas da literatura. La Fontaine reescreve as histórias do escravo Esopo e faz de si mesmo um escravo do escravo, que é como a prosa (ou, no caso, o verso) pode recomeçar. Descobre, neste novo início, um princípio clássico da literatura moderna.
A percepção integral das coisas nunca foi semente do otimismo. "Mais vale sofrer que morrer" é a divisa de La Fontaine. Nas "Fábulas", no entanto, ele quer "dar prazer educando", à maneira de Horácio. A tradição crítica aponta o jansenismo, o cartesianismo e o humanismo de Montaigne como as três maiores influências sobre seus versos. Temperadas por uma ironia constante, as três correntes vão confluir num estilo reconhecido, com justiça, como uma das maiores glórias do classicismo. À sua maneira, é um estilo de resistência, ou independência literária. Numa época que propaga a "interpretação exata" das palavras, La Fontaine é, gentilmente, um cético. Sua moral, a única moral das "Fábulas", é a prudência.
Cabe ao leitor a interpretação das "Fábulas", como sempre é o leitor quem completa uma parábola. Não há interpretação simples dessas histórias, que tantas vezes se apresentam como o contrário de si -relatos do vencedor, escritos pelo vencido. Não é justamente a pobreza de uma redução final o que nos repugna na interpretação doutrinária das parábolas? E não é isto também o que nos afasta das fábulas, supostamente tão bem conhecidas, mas de fato tão pouco lidas?
Esopo nos fornece um emblema da interpretação: "Um filhote de toupeira disse à sua mãe que era capaz de enxergar. Para testá-lo, a mãe lhe deu uma pedra de incenso e pediu que dissesse o que era. Um cascalho, respondeu. Meu filho, disse a mãe, não só não podes ver, mas perdeste o sentido do olfato." Qual é a moral desta fábula?

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