São Paulo, domingo, 9 de abril de 1995
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Selva literária

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO - Desprezando a pilha de livros que aguardam leitura ou releitura, fui às estantes ciscar e delas retirei um romance do José Condé. A página de rosto estava rasgada. O próprio Zé a arrancara depois de uma briga unilateral. Pediu-me os livros que me dera com afetuosas dedicatórias. Atendi-o com uma condição: que tirasse o que quisesse mas devolvesse o que era meu.
A briga resumira-se numa brincadeira de que ele não gostou. Naquela época, vítima de uma insânia passageira, eu publicava um romance por ano e o Zé, aproximadamente, um em cada dois ou três anos. A editora era comum e trabalhávamos em mesas coladas no mesmo jornal.
Uma tarde, o Zé entrou pela redação ventando fogo. Viera com os originais de um romance que a editora, apesar da qualidade do texto, julgara curto demais. O editor não aceitara a sugestão do Zé: abrir amplos espaços entre os poucos capítulos e, dentro deles, espaços igualmente amplos entre os parágrafos. O livro engordaria umas 20 páginas.
Na véspera, eu recebera as provas do romance que lançaria naquele ano. Num ataque de autocrítica, repelindo o bom senso radical, limitei-me a reduzir o corpo de delito que entregara com quase 500 páginas para apenas 200 e poucas. Sobraram-me outras tantas, que ali estavam em cima da mesa, à espera do lixo.
Solidário com a aflição do amigo, sugeri que ele aproveitasse aquelas 200 páginas e as esparramasse pelo seu livro. O Zé arregalou os olhos, de espanto e pela afronta. Garanti-lhe que os críticos iriam ficar pasmos, ele seria considerado o Joyce de Pernambuco, o Proust de Caruaru.
Zé encarou-me assombrado. Exigiu que eu nunca mais lhe dirigisse a palavra. Pediu de volta os livros que me havia dado, arrancou-lhes as dedicatórias. Passou dias emburrado até que, no bar do Michel, veio me abraçar. Nenhuma obra de arte valeria a nossa amizade -proclamou ele.
No dia seguinte, pediu-me os livros e neles colocou dedicatórias que, muitos anos depois, ele já do outro lado, eu na fila, me fizeram sentir uma saudade brutal. Dele. E de mim mesmo.

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